Por Armindo Vaz, ocd (*)
Sabemos
que Santo Agostinho fez da Bíblia o livro da sua vida. Mimou o tesouro das
sagradas Escrituras, atingindo com elas uma cumplicidade que raramente foi
conseguida depois dele. Como outros Padres da Igreja, respirava a Escritura.
Vivia dela. Pensava a partir dela. Ensinava e pregava por ela. Pôs a Escritura
no centro da sua existência e da sua relação com a Igreja. E isso já lhe
reserva um lugar de honra na arca do admirável e do imperecedouro. Leu-a – como
deve ser – à procura de iluminação para a vida, para problemas teológicos e
interrogações morais, para a educação e edificação pastoral da fé e para
alimentar a comunhão com Deus com unção de místico: «Sejam as tuas Escrituras
as minhas castas delícias» (Confissões, XI, 2, 3). Tinha «as minhas
ânsias veementemente inflamadas nas tuas Escrituras» (Confissões, XI,
22, 28). Isso aparece especialmente no livro das Confissões, em que
Agostinho manifesta a grande devoção com que «venera e coloca..., no vértice da
autoridade que deve ser seguida, a tua santa Escritura» (Confissões,
XII, 16, 23). «Cheio de gozo, ouvia muitas vezes a Ambrósio... recomendar
[sobre os antigos escritos da Lei e dos Profetas]: "a letra mata, mas o
espírito vivifica". Removido assim o místico véu, desvendou-me
espiritualmente passagens que, tomadas à letra [ad litteram], pareciam
ensinar a perversidade» (Confissões, VI, 4, 6).
Com o
conhecimento dos textos da Bíblia, esmaltou o seu estilo literário de
tonalidades, imagens, metáforas, adaptações, citações retiradas dela por
associação de ideias. Nesta associação, às vezes o seu texto assemelha-se a um
mosaico composto com pedrinhas extraídas da canteira da Bíblia (como em Confissões,
XIII, 13, 14). As numerosas citações eram atraídas com o fim de se exprimir e
até de rezar mediante uma linguagem sagrada, com o corpo linguístico bíblico
(exemplo sumo para a prática da lectio divina hoje). Procurava
na Bíblia a linguagem para desafogar o tropel de sentimentos humanos e
espirituais que inquietavam o seu coração, para fazer graduais aproximações ao
ser de Deus e para obter a harmonia interior. A linguagem bíblica surgia-lhe ao
fio da pena: «Eu peregrinava longe de Ti, excluído até das bolotas dos porcos
que eu apascentava com bolotas» (citando Lucas 15,16). Era uma forma de se
interpretar a si próprio e de se deixar ensinar e restaurar pela Bíblia.e
sublimar, em imagens, as complexas vicissitudes da vida humana «no bem e no
mal». Ela é uma grelha de leitura e um instrumento de compreensão d
A mais
célebre leitura que ele fez de um texto bíblico foi a dos capítulos 2 e 3 do
Génesis, a narrativa que passou a ser conhecida como "história de Adão e
Eva". Lá viu Agostinho as respostas ao seu grande problema teológico sobre
as origens do mal: «Unde malum? E procurava a origem do mal e
procurava mal e, na minha própria indagação, não via o mal» (Confissões,
VII, 5, 6-7). E a resposta encontrada foi: o mal, o físico e o moral, provém do
«pecado original» cometido por «Adão e Eva» históricos, perdendo ambos o
«estado paradisíaco» e sendo punidos por Deus com o respetivo castigo moral:
todas as penas da vida e a morte. Mas, mesmo aí, na conceção da arquitetura
desta teoria teológica, Agostinho foi grande. Deu-lhe uma tal sustentabilidade
e uma tal capacidade de convencer que ela impôs-se até que fomos capazes de
situar no seu contexto próprio e de compreender literariamente essa narrativa
bíblica de criação, lendo-a agora a partir do seu género literário específico,
que é o de mito de origem (designação que ainda assusta as
pessoas hoje mas que é incontornável). Com a metodologia correta e com a ideia
positiva sobre mito (uma história imaginada que atribui a um
ato criador, divino, a existência do mundo e da humanidade, para dar-lhes o
sentido último), podemos hoje perceber que a existência do mal físico é
inerente à condição finita e à radical limitação dos seres e das leis da
natureza. A criação do sofrimento é atribuída a Deus como forma de meditar nele
ao mais alto nível, com uma linguagem imagética, própria das origens, e não com
a linguagem própria do começo factual. O sofrimento desde sempre acompanhou e
sempre acompanhará a finitude dos seres sensíveis, que o autor de Génesis 2-3,
num ano qualquer entre os séculos X e VI a.C., procurou ver à luz de Deus.
De
qualquer modo, não seria justo nem interessante assombrar a inteligência, o
espírito e a figura fulgurantes de Agostinho por causa desta teoria teológica
transitória (de longa transitoriedade!). Se fez o melhor que se podia saber no
seu tempo, ele é o melhor. A partir dos fins do séc. XX, a exegese bíblica
passou a dispor de ferramentas hermenêuticas que ele não pôde utilizar para a
compreensão dessa narração do Génesis. Mas a história das ideias não se
discute. Aceita-se, pondo-as em movimento criativo, para ir além do que
Agostinho bem soube dizer. Ele apoiaria as propostas de mudar, para melhorar o
que ele construiu como ninguém, e encorajaria a mudar.
A sua
inquieta busca de Deus fez-lhe perceber a distância infinita entre todo o bem
que podemos pedir à vida e a majestade do Criador. Fez repousar a sua total
felicidade irreversivelmente em Deus, sua satisfação absoluta e duradoira.
Dado que
essa teoria teológica agostiniana esteve ao serviço da resolução do problema da
causa do mal, é subsidiária, funcional. Isto faz-nos suspeitar que não a
defenderia se não a julgasse indispensável para salvaguardar a necessidade
absoluta e universal de o ser humano ser salvo pela graça de Jesus Cristo.
Hoje, a Teologia pode justificar à fé a realidade do mal de maneira razoável,
resgatando da teologia de Agostinho a afirmação do carácter necessariamente
histórico do pecado. E a universalidade do pecado tem expressão na Bíblia,
especialmente em Paulo, que, para a afirmar, fez evoluir o sentido de Génesis
2-3. Em nenhuma cena é tão palpitante como na crucifixão de Jesus, onde se
assiste ao duelo de gigantes, a Lei ou a religião pervertida em ideologia («nós
temos uma Lei e, segundo a Lei, deve morrer, porque se fez Filho de Deus»: João
19,7), por um lado, e a fé, a vida, a liberdade, a bondade, por outro. Também
por aí, não recorrendo a Génesis 2-3 e sim à teologia da cruz, se resgata e
afina a vitalidade da redenção, em que Agostinho insistia. Uma visão bíblica da
salvação operada por Jesus Cristo não supõe que ela consistiu na tentativa
divina de apagar o pecado original ou de restaurar a criação
fazendo-a voltar a uma condição primitiva que inexplicavelmente teria corrido
mal; a salvação é antes uma oferta da graça e do amor de Deus em Jesus,
conforme o seu plano eterno para a humanidade (como se percebe lendo os hinos
cristológicos de Paulo no início das cartas aos Efésios e aos Colossenses).
A grande
ideia do maior génio do Ocidente ao ler Génesis 2-3 foi ver lá a sua própria
história. De facto, a fecundidade dessa narrativa bíblica, precisamente
enquanto mito de origem, advém-lhe da possibilidade de refletir e
sublimar, em imagens, as complexas vicissitudes da vida humana «no bem e no
mal». Ela é uma grelha de leitura e um instrumento de compreensão do espírito
humano e do mundo; é um miradouro que proporciona uma visão positiva e otimista
da vida à luz de Deus.
O
Agostinho convertido do maniqueísmo foi um peregrino mendigo dos céus, espírito
insatisfeito que não punha limites à ânsia das suas interrogações, colocadas
sempre mais alto
Quando o
contemplativo Agostinho que se extasiava com as maravilhas do mundo teve
dificuldade em integrar certos bens e doçuras da vida na sua espiritualidade,
desejava elevar-se ao máximo da perfeição humana, como forma de «se revestir do
Senhor Jesus Cristo». A sua inquieta busca de Deus fez-lhe perceber a distância
infinita entre todo o bem que podemos pedir à vida e a majestade do Criador.
Fez repousar a sua total felicidade irreversivelmente em Deus, sua satisfação
absoluta e duradoira, como desejando parar a sua vida no momento da visão de
Óstia Tiberina (Confissões, IX, 10, 23-26). O Agostinho convertido do
maniqueísmo foi um peregrino mendigo dos céus, espírito insatisfeito que não
punha limites à ânsia das suas interrogações, colocadas sempre mais alto.
Pelos
saborosos frutos que ele colheu da leitura orante da Palavra, é um forte
estímulo para a lermos regularmente.
(*) Biblista, professor catedrático emérito da Faculdade de Teologia da
Universidade Católica Portuguesa
https://www.snpcultura.org/santo_agostinho_leitor_da_palavra.html
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