"NEM
PRÍNCIPES E NEM PRINCESAS, CA-
RAS-INTEIRAS OU CA-RAS-METADES: AMOR É
CONSTRUÇÃO, PRINCÍPIO DE REALIDADE"(Parte I)
Por Lindolivo Soares Moura(*)
"O amor não é um 'objeto encontrado',mas
o produto deum longo e muitavezes
difícil esforço e boa Vontade" (Z.Bauman).
Talvez nenhuma outra matéria prima
tenha sido tão decantada em romance, prosa, verso e reverso quanto o amor. Os
tempos vão e vêm, as fantasias mudam de roupa e roupagem, as paralelas viram
triângulos, os triângulos viram retângulos, os Romeus se entrecruzam com outras
Julietas, mas o personagem principal se recusa a sair de cena: o amor. Sem ele
não tem espetáculo nem espectadores, não tem drama nem trama, nem camarim nem
folhetim. Afinal, "é o amor que mexe com as cabeças e as deixa
assim", pensando tanto no outro ou na outra a ponto de se esquecerem de
si, terminando por não mais se lembrarem de que a vida é feita prá viver, e não
apenas fantasiar e sonhar. Realização ou frustração, atração ou rejeição,
satisfação ou decepção, tudo ao final acaba caindo na conta do amor. Amor
que por fim se enamora e se torna amante
de si mesmo: "amor I love you, amor I love you...".
Por trás de tanto amor, entretanto,
costumam se esconder, camuflados, amores estranhos e esquisitos, quando não,
perigosos e arriscados: "amor
bandido", "amor Violento", "amor veneno", dispostos a
cometer a maldade de despertar nos amantes o pior de si mesmos: o insano e a insanidade.
Amor sem coração, sem compaixão, e que, divorciado da razão, da paixão vai
muito, muito mais além: "se não for meu ou minha, não será de mais
ninguém!". "Amores" covardes, mesquinhos, pura ninharia; amores
tóxicos e intoxicantes, e com uma agravante: chamar de amor a mais hedionda
covardia. "Legítima defesa da honra!"; "delito passional!";
"assassinato por amor!", de tudo o amor acaba devedor. "Mas é
também por amor que tudo se perdoa", dirá alguém. Sim, é verdade, mas
confundir amor com ódio parece ser a mais hedionda das insanidades. Ainda
assim, há quem o faça, e talvez seja esse o exemplo mais clássico e mais
trágico dos dramas da fantasia e das tramas da vida real. O certo porém é que
em maior ou menor grau muitos julgamentos e condenações, delitos e traições, em
nome do amor são praticados.
Falar sobre isso é a proposta da
presente reflexão: trazer para o consciente convicções e percepções arraigadas
sobre o amor que requerem revisão, ressignificação, e por que não,
rematrização. Sim, é certo que o simples falar sobre isso desperta paixões e
emoções. Mas é também fato que muitas dessas paixões e contradições podem
despertar o pior de nós mesmos, e ignorá-las pode significar a pior das
traições. Em nome da fidelidade e da lealdade, portanto, é preciso coragem para
confrontá-las e submetê-las ao crivo da razão.
01.
O amor romântico: a personificação e a "coisificaçao" do amor.
O maior dano e prejuízo que o amor
romantizado poderia causar e efetivamente continua causando aos seres humanos é
o fato de transformar o amor numa "coisa", num "objeto",
notadamente numa "pessoa"; e o que é ainda pior, em pessoas, objetos
e figuras idealizados. Fadas e suas varinhas mágicas, príncipes e princesas
encantados, castelos e palácios iluminados, dragões e heróis enfeitiçados,
finais apoteóticos e Hollywoodianos, delírios, alucinações, devaneios e utopias
que não cabem mais na imaginação. No romantismo o princípio de realidade cede
literalmente seu lugar à ficção e à fantasia, pelas quais é desconsiderado,
ignorado, e mais que isso, usurpado. Com a mente em terceira dimensão, homens e
mulheres passam a "sonhar" com o momento mágico em que encontrarão
seu príncipe e sua princesa encantados, suas
"caras-metades" tão aguardadas, o cavaleiro e herói que
defenderá sua dama e princesa contra tudo e contra todos, e a princesa
encantada e encantadora com a qual esse herói saído dos contos de fadas passará
a viver, juntos e felizes para sempre..
Por séculos e talvez milênios homens e mulheres sonham, devaneiam e suplicam pela
realização de tais sonhos, fantasias e idealizações.
Ocorre que ninguém, absolutamente
ninguém, está fadado ou destinado a "encontrar" seu grande amor, pelo
fato de que ele simplesmente não existe e jamais existiu. Segundo o sociólogo e
filósofo polonês Zygmunt Bauman, o amor não é um objeto e tampouco uma pessoa a serem esperados e ansiosamente
aguardados, descobertos e finalmente "encontrados". O amor, afirma, é
resultante de uma "construção":
longa, determinada, e que exige esforço redobrado, disposição contínua,
e inesgotável boa vontade. Segundo Lou Marinoff, orientador filosófico
norte-americano, quando nos dispomos a
investir em alguém nosso amor, nossa lealdade e nossa dedicação, e aceitamos em
contrapartida o investimento que o outro faz em nós transformando-o em parte de
nós mesmos, quer queiramos quer não estamos levando para dentro de casa um
verdadeiro "cavalo de Tróia". Por quê? Porque com o tempo as falhas,
os defeitos e as fraquezas do companheiro começarão inevitavelmente a aparecer,
cada vez mais e mais, fazendo com que o que de início sequer era percebido - a
paixão e não o amor é cega - passe a ser agora irritante, dali a pouco
insuportável, finalmente intolerável. É
assim, conclui ele, que o amor vai pouco a pouco sendo minado, até finalmente
atingir o ponto em que pode acabar se transformando em ódio. O sonho e a
fantasia, se não caem por terra, vão se ajustando, necessária e
obrigatoriamente, ao princípio de realidade. Se a fidelidade e sobretudo a
lealdade, não vêm desde o princípio sendo plantadas e cultivadas, o vínculo
dificilmente se mantém.
A história real, portanto, quase
sempre é bem outra: não é a gata borralheira que se transforma em princesa, e
muito menos a fera que se transforma em príncipe, ambos encantados, mas exatamente
o contrário. Por trás do amor romântico e idealizado escondem-se na maioria das
vezes expectativas irreais, fantasiosas, quando não um egoísmo exacerbado:
"meu" marido, "minha esposa", "minha" família,
"meus" e "nossos" filhos, "minha" herança, e pronomes
pocessivos que não acabam mais. O amor romântico e idealizado precisa portanto
ser visto com cautela, sob pena de que o projeto iniciado com um sonho acabe
terminando em pesadelo.
02.
"Eu te prometo ser fiel...": promessa não é sinônimo de amor, e sim
de obrigação.
Nenhuma declaração de amor autêntico
pode se alicerçar em promessas, menos ainda em contratos e obrigações. Parap
garantia de "direitos e deveres mútuos" existe o Direito legal,
Direito que esclarece justamente sobre os "diretos, deveres e
obrigações" de cada uma das partes. Deveres e obrigações que não demandam
fidelidade e menos ainda lealdade: basta que sejam cumpridos, rindo ou
chorando, satisfeito ou insatisfeito, concordando-se ou não com as imposições
estabelecidas. Causa no mínimo estranheza o fato de que o Código Civil que
vigorou até início do presente milênio, até 2002 mais precisamente, tivesse que
colocar a fidelidade para com a "exclusividade" como o primeiro e
mais importante desses "direitos e deveres mútuos". E não só: tivesse
que declarar, como de fato o fazia, a infidelidade - no caso o adultério - como
crime. Isso mesmo: "crime"! Com penas e punições previstas em lei!
Não deveria por acaso o amor, ao menos o autêntico e verdadeiro, assim como a
lealdade como uma de suas tantas expressões, serem suficientes para garantir a
fidelidade? Acaso a lei jurídica ou legal possui mais força que estes, o amor e
a lealdade, para assegurá-la? Estaria a infidelidade conjugal sendo considerada
como "crime hediondo", asqueroso, horrendo e abominável, passível
portanto de ser penalizada, criminalizada, e tratada como tal?
Fazer e exigir promessa é atitude
típica daqueles para quem a confiança e a lealdade não são suficientes. Você
possui um amigo leal, íntegro, probo, digno, fiel e outras virtudes mais. Você
está para fazer uma viagem mais longa, e tendo absoluta convicção da fidelidade
e da lealdade desse amigo solicita a ele que pague todos os boletos que
chegarem à sua casa durante o tempo em que estará ausente. Entrega a ele, sem
pensar duas vezes, cópia da chave e seu cartão de crédito. Ao fazer isso, você
exigirá dele que "prometa ser fiel" e que não fará uso do cartão
senão para as finalidades mencionadas? Faria sentido exigir isso? E se o
fizesse, não seria de sua parte uma atitude contundente de desconfiança e
portanto de infidelidade? Estabelecer um vínculo com base numa promessa, numa
lei ou numa obrigação, e não no amor - na confiança e na lealdade - é lançar os
alicerces de tal vínculo na areia - e o que é ainda pior, areia movediça - e
não sobre a rocha firme. Não há promessa, lei ou obrigação, que possam fazer as
vezes do amor, da confiança e da lealdade. E o que estas não sejam suficientes
para assegurar, não haverá por certo promessa ou juramento que o seja. Eis a
razão da máxima agostiniana, para muitos inimaginável e incompreensível:
"ama e fazer o que quiseres".
O amor autêntico é por essência fiel,
e mais que isso, leal. E se não se é fiel, e menos ainda leal, é porque o amor
não é autêntico: é caricatura, é simulacro, é falsidade pura. Amor que não
suporta o erro, a fraqueza, a debilidade, incluindo nesse bojo a própria
infidelidade. Melhor portanto não prometer; mas se isso se faz absolutamente
necessário, que seja promeça de esforço, coragem e disposição. Nas coisas do amor
jamais é sábio e menos ainda prudente prometer o que não se tem certeza de
poder cumprir. Fazê-lo é no mínimo imprudência e temeridade.
03.
Amor fiel ou amor leal?: semelhança essencial, diferença abissal.
A semelhança entre fidelidade e
lealdade podem à primeira vista parecer ser tão grande, que é bastante comum
serem tomadas como sinônimos. Mas as diferenças chegam de fato a ser tão
abissais, que só mesmo a vivência e a prática de uma e outra - "e", e
não "ou" - permitem compreender e alcançar essa certeza. Justamente
por isso merecem um tópico à parte. Note-se que aqui o termo
"fidelidade", para efeito de avaliação e comparação com a
"lealdade", assume o significado que tanto do ponto de vista
religioso como legal lhe é conferido, qual seja: o de direito mútuo de uso,
usufruto e gozo do corpo do companheiro - cônjuge ou não - em regime ou caráter
de "exclusividade". Sei que essa definição é excessivamente
reducionista, materialista e pobre, "paupérrima" para alguns. Mas não
fui eu quem assim a concebeu, e sim a lei no campo jurídico, e a religião no
campo da espiritualidade. Pergunte a quem quer que seja o que é ser infiel no
domínio dos relacionamentos amorosos e/ou conjugais, e certamente você já
pressupõe que resposta esperar. Pergunte o que é um marido ou uma esposa
"infiel", e de igual modo, salvo surpresas e honrosas exceções, as
respostas serão certamente padrão.
Esclareçamos desde logo: é
absolutamente inconteste que fidelidade e lealdade não só não se excluem
mutuamente, como de resto podem e devem ser conjugadas poderosa e eficazmente.
Mas isso não deve ser suficiente a ponto de impedir que reconheçamos o fato de
que, no limite, é possível ser fiel sem ser leal, assim como é possível ser
infiel, no sentido estrito mencionado, sem deixar de ser leal. Seria ignorar
ingenuamente a realidade de que há casais fiéis, estritamente fiéis,
tristemente fiéis, quando um dos dois ou mesmo ambos prefeririam não o ser. E
isso também é uma forma de deslealdade, talvez a pior delas. Por outro lado,
lealdade não significa santidade,
perfeição, e muito menos garantia absoluta de fidelidade (no sentido
estrito de "exclusividade" sexual): pode-se "trair", nesse
sentido, também por fraqueza,
debilidade, sedução, e até por estupidez. Se a sedução de um lado,
se associa com a fraqueza do outro, a
melhor receita para a traição ou infidelidade está posta.
Mas mesmo quem é leal trai? -
perguntar-se-á então. Não deveria! A lealdade é sem dúvida um recurso poderoso,
do ponto de vista preventivo, profilático; aquele ou aquela que a tem como
virtude, e se esmera em sua prática, está sem dúvida infinitamente mais
preparado e capacitado para não "cair em tentação", do que aquele que
é apenas fiel, estritamente fiel, sem ser leal. Mas ainda assim não há garantia
absoluta de que a fidelidade esteja assegurada. Então - perguntar-se-á - de que
vale ser leal além de ser fiel? Vale muito! E como vale! E talvez seja
especialmente para com a fidelidade que ela revela sua excelência. Como assim!?
Simples assim: fidelidade, pura e simples, é recurso pobre, insuficiente, e por
isso mesmo incapaz de suportar o seu oposto: a infidelidade. Noventa e nove
vírgula noventa e nove por cento dos casais, para não generalizar nos cem por
cento, se declaram "dispostos" a ir ao limite para suportar tudo,
menos - porque se julgam e se declaram "incapazes" - a infidelidade
ou a traição. No entanto a lealdade "pode" e está em condições de
conseguir e de alcançar aquilo que a "fidelidade", sozinha, sem o
anteparo da lealdade, difícil e raramente "conseguiria": perdoar a
traição, perdoar a infidelidade. E por que pode alcançar essa proeza? A
pergunta, assim como uma alternativa de resposta, merecem um novo parágrafo.
Admiramos os cães! E por que os
admiramos?E por que os consideramos "os melhores amigos do homem"? Acima de tudo, pela sua "lealdade",
e não apenas pela sua "fidelidade". A fidelidade é boa, quem o
negará? Mas a lealdade é muito, milhares de vezes melhor! No sentido humano dos
termos, já sabemos que a fidelidade dos casais significa jura ou promessa de
respeitar a "exclusividade" para com o uso, usufruto e gozo do corpo
e da corporeidade um do outro. É ela que em princípio se torna uma espécie de
"depositária fiel" - ainda que sem garantia alguma - da
"exclusividade". Para com a lealdade não é bem assim. O que a torna
"abissalmente" mais digna, nobre e virtuosa que a fidelidade, é a
gama de disposições e compromissos que ela porta consigo, incluindo, claro, o
compromisso de fidelidade.
Jogando com as palavras: fidelidade é
lealdade para com o mínimo, lealdade é fidelidade para com o máximo. Fidelidade
é antes e acima de tudo atitude e compromisso com o outro - pessoa, promessa,
lei ou obrigação - enquanto a lealdade é compromisso e disposição antes e acima
de tudo para consigo mesmo - princípios, crenças, valores e convicções - e por
consequência disso, lealdade também para com o outro, quem quer que esse outro
seja. A lealdade não pergunta quem o outro "é", o que o outro
"tem", ou o que o outro "fez". E se tais perguntas ela faz,
não é com o intuito saber melhor que ganho ou proveito disso poderá tirar, e
sim para avaliar melhor como eventuais perdas e danos podem trazer o mínimo de
prejuízo e de consequências nocivas e danosas para o todo, para o vínculo e para a relação. Por
isso ela "pode vir a ser", e quase sempre de fato é, o antídoto, o
remédio, a melhor terapêutica para lidar com a pior pior das feridas, as vezes
já transformada em grave doença: a chaga da infidelidade.
É claro que ela não é garantia de
cura, nem tampouco poderia fazer qualquer promessa nesse sentido. Mas a
psiquiatria também é muito clara quando adverte que um transtorno pode se
encontrar numa fase - leve - avançando ou não para uma outra - moderada - e
finalmente podendo ou não se encaminhar para uma última - aguda, crônica ou grave. Ainda assim,
assevera que "para o que não há cura, sempre há e haverá tratamento".
Da Medicina e da Psiquiatria em geral portanto, assim como dos médicos e
Psiquiatras em particular, temos o direito de esperar não apenas fidelidade mas
acima de tudo lealdade para esses e outros princípios. Por que deveria ser
diferente com os distúrbios, as feridas e as doenças, que investem contra os
relacionamentos e vínculos que têm como escopo realizar sonhos, desejos,
projetos e realizações?
À guisa de conclusão: Anais Nin,
pensadora francesa do século passado, deixou-nos um pensamento precioso. Ela afirma:
"O
amor não morre de morte natural. Ele morre porque nós não sabemos como renovar
a sua fonte. Morre de cegueira, de erros e das traições. Morre de doenças e das
feridas; de exaustão, das devastações, da falta de brilho!". Realçando:
ELE MORRE PORQUE NÃO SABEMOS COMO RENOVAR A SUA FONTE: a lealdade, mais com
certeza do que a fidelidade, pode até não saber como, mas é absolutamente certo
que ela estará sempre disposta e determinada a encontrar o melhor caminho e a
melhor solução. Para ela, é certo, na maioria das vezes o final não será um
"gran finale", um final apoteótico - romântico, utópico, idealista e
Hollywoodiano - mas será certamente o
melhor final possível dentre outros tantos prováveis. A lealdade não se deixa
enganar nem pelo otimismo extremo nem pelo pessimismo exacerbado: o princípio
pelo qual ela se deixa orientar pode bem ser chamado de "realismo
esperançado".
Observação: Esta primeira parte da reflexão
continua e se conclui com a segunda, de mesmo título, a ser oportunamente
compartilhada.
(*)Possui graduação em teologia pelo Instituto teológico
pio XI (1983), graduação em Psicologia pela Universidade Federal do Espírito
Santo (1997), graduação em Filosofia pela Faculdade Salesiana de Filosofia,
ciências e letras (1986) e mestrado em Filosofia pela Pontificia Universidade
Gregoriana ,Roma - Itália(1988) . Foi por 11 anos consecutivos professor de
filosofia jurídica e psicologia Jurídica do Centro Universitário de Vila Velha,
ES.Durante esses 11 anos foi Coordenador Pedagógico por 05 anos e de Ensino por
1 ano e meio do mesmo Curso de Direito. Atualmente é terapeuta de grupo,
individual, vocacional, Consultório Clínico Psicológico particular. Formou-se
recentemente em Psicodrama (02 anos) pelo Instituto Pegasus de Vitória, ES.
Atualmente, cursa a pós graduação TCC - Terapia Cognitivo Comportamental.
https://www.escavador.com/sobre/3708588/lindolivo-soares-moura
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