A independência do Brasil e a Igreja católica
Por André Luis Pereira
Miatello*
Neste
artigo, discute-se a contribuição da Igreja católica para a independência do
Brasil, em 1822, para o fortalecimento do Estado imperial e das instituições
públicas. Discute-se também seu papel na oposição política ao regalismo do
imperador e ao próprio regime monárquico.
Introdução
A
comemoração dos 200 anos da independência do Brasil nos dá a oportunidade de
refletirmos sobre a participação da Igreja católica na história do país e,
particularmente, no processo de sua emancipação política. Uma de suas
principais contribuições situa-se, justamente, na promoção da ordem
constitucional e no fomento do debate político, o que contraria a visão
reducionista de uma Igreja preocupada apenas com uma agenda moralista e
conservadora.
1. Uma Igreja submetida ao Estado?
“Em nome da Santíssima Trindade”: assim começa a Constituição Política do
Império do Brasil,[1] promulgada
em 25 de março de 1824, festa da Anunciação do Senhor, a qual estabelece os
fundamentos do Estado brasileiro independente. Essa mesma Constituição,
assinada e jurada por Dom Pedro, determina, em seu artigo 5º: “A Religião
Católica Apostólica Romana continuará a ser a Religião do Império. Todas as
outras Religiões serão permitidas com seu culto doméstico, ou particular, em
casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior do Templo”. O artigo 102,
que trata do poder executivo, confere ao imperador o poder de “nomear Bispos e
prover os Benefícios Eclesiásticos” (BRASIL, 1886, p. 8; 21).
Como se
nota, a ruptura política com Portugal conservou, no Brasil, a prática do
regalismo, isto é, da doutrina política, de origem iluminista, que sustentava a
supremacia dos governantes em relação a qualquer autoridade religiosa e
defendia o direito régio de intervenção nos assuntos eclesiásticos (OLIVEIRA,
2017, p. 81). Acolhido pela Constituição de 1824, o regalismo somou-se a outra
prática, de origem medieval, que conhecemos pelo nome de padroado, pelo qual a
Santa Sé concedia aos reis ibéricos responsabilidades de administração
eclesiástica em vista do patrocínio régio para as missões de evangelização e
para a expansão da Igreja católica nos territórios conquistados (HOLANDA, 1995,
p. 118). Desse modo, o Brasil se afirmava como terra católica, muito embora a
Igreja católica no país estivesse sob a jurisdição civil do imperador
constitucional, não do papa.
Se a
Constituição de 1824, por um lado, confere tamanho poder ao imperador no âmbito
eclesiástico, por outro, autoriza a participação da Igreja nas mais diversas
esferas da vida pública; mais do que isso, o texto constitucional reconhece,
direta e indiretamente, que a Igreja católica, com suas estruturas, seu clero e
seus espaços religiosos, foi indispensável para que o Brasil conseguisse
sustentar sua independência, organizar seu Estado, assegurar a unidade
territorial, promover a paz civil e social, favorecer a pluralidade política e
garantir sua governança. O regalismo era uma política de Estado, não uma camisa
de força que subjugava a Igreja. Uma prova disso podemos ver, por exemplo, na
diversidade ideológica que caracterizava o clero brasileiro, composto tanto de
padres e bispos monarquistas quanto de liberais e, até mesmo, de vários
ardorosos republicanos.
Para
além da pluralidade de orientações políticas, o clero brasileiro exibia
diferentes formas de pensar o papel da religião e da Igreja dentro do Estado
brasileiro: se, por exemplo, o padre Diogo Antônio Feijó (1784-1843)
representava a ala do clero liberal, totalmente envolvido com a política
partidária, o padre Antônio José Ferreira Viçoso (1787-1875), futuro bispo de
Mariana, representava a ala do clero que defendia a ordem constitucional, porém
não queria que a Igreja fizesse política com base em alianças partidárias e
oligárquicas. O padroado civil, portanto, nem tirava a autonomia do clero
diocesano e religioso para pensar a realidade política e a situação da Igreja,
nem impedia que o clero fizesse declarada oposição ao imperador e aos governantes
locais. Investigar essa história pode nos levar a descobrir uma vida eclesial
muito mais profética do que se imagina.
2. A Igreja e a independência do Brasil
Como
demonstram as mais recentes pesquisas do Prof. Ítalo Santirocchi (2021), a
Igreja católica, por intermédio do seu episcopado e do clero em geral,
contribuiu ativa e significativamente para a independência do Brasil de
Portugal, em 1822. Ademais, os ministros da Igreja, bispos e presbíteros,
trabalharam intensamente para a “formação do Estado Imperial brasileiro” e, em
graus variados, compartilharam muitos dos ideais liberais que marcaram nossa
independência, em oposição aos ideais políticos do Antigo Regime. Isso porque,
nas palavras de Thales de Azevedo (1978, p. 122-123), “o novo regime, a nova
ordem, a nova estrutura governativa e política instauraram-se sob a inspiração
de um confuso amálgama de doutrinas e teorias de que partilhavam não poucos
clérigos”. Muitos deles não só partilharam teorias políticas comuns, mas também
foram artífices de movimentos de ação política.
Quando
as Cortes de Lisboa se reuniram, em 1820, para exigir que Dom João VI
retornasse a Portugal, entre os 89 deputados que o Brasil havia enviado como
representantes do reino, 26 eram membros do clero, tendo sido eleitos pelas
populações de suas províncias e de acordo com os procedimentos adotados pelas
Cortes. O clero também atuou ativamente na assembleia constituinte que redigiu
a Constituição de 1824: entre os 100 deputados, 22 eram padres. Esses dois
exemplos de envolvimento da Igreja com o processo de independência revelam
quanto o clero foi responsável – ao lado de outros intelectuais e lideranças
sociais – por defender e divulgar os princípios liberais que marcaram não só os
movimentos políticos de emancipação, em Portugal e no Brasil, mas também a
primeira carta constitucional do Brasil independente. Sem renunciar à
responsabilidade religiosa, os ministros da Igreja demonstraram compromisso com
o regime legal e constitucional, e o fizeram pelas vias políticas ordinárias,
tais como a adesão a partidos políticos e o exercício de mandatos eletivos de
representação política.
A
presença do clero nos movimentos emancipatórios e antimetropolitanos já era
antiga no Brasil. Entre os conjurados da Inconfidência Mineira de 1789 ou da
Revolução Pernambucana de 1817 (SANTIROCCHI, 2021, p. 1003), contavam-se muitos
padres e numerosos leigos, engajados nas confrarias. A adesão desses clérigos
aos movimentos políticos – alguns dos quais de caráter revolucionário – atendia
a seus princípios políticos, que, em muitos casos, contrariavam as tendências
hegemônicas, seja na esfera do Estado, seja dentro da própria Igreja. Em outras
palavras, os clérigos distribuídos pelo território brasileiro representavam
mais as convicções e interesses de suas regiões e do povo para o qual
trabalhavam do que os posicionamentos oficiais tomados no interior da Igreja, o
que diminui muito a ideia de um clero que agia como uma corporação separada do
tecido social mais amplo.
Para
entender a contribuição da Igreja católica para a independência do Brasil,
precisamos ter presente que o Estado brasileiro, no século XIX, estava em
formação; a partir de 1822, tudo estava por fazer, seja do ponto de vista
político, institucional, legislativo ou mesmo burocrático. As dioceses,
paróquias, confrarias e conventos formavam, talvez, a mais efetiva rede de
organização da população, e por isso tais estruturas foram muito bem
aproveitadas para a fundação do Estado constitucional.
De acordo com a Decisão nº 57, de 19 de junho de 1822, que dava
orientações sobre as eleições dos deputados constituintes que iriam preparar a
futura Constituição do então Reino do Brasil, as paróquias (ou freguesias)
foram apontadas como zonas eleitorais primárias: “as eleições de freguesias
serão presididas pelos Presidentes das Câmaras com assistência dos párocos”
(capítulo 1, n. 3), os quais deviam fazer o reconhecimento da identidade dos
eleitores (capítulo II, artigo 5º). Nesse mesmo capítulo II, lê-se: “no dia
aprazado para as Eleições Paroquiais, reunido na Freguesia o respectivo Povo,
celebrará o Pároco Missa solene do Espírito Santo, e fará, ou outro por ele, um
discurso análogo ao objeto e circunstâncias” (apud FERREIRA, 2005, p. 75).
O papel
das “assembleias paroquiais” foi reproposto pela Constituição de 1824, que
designou as paróquias como zonas eleitorais também para a escolha de
representantes políticos em âmbito provincial e nacional. Para o Brasil do
século XIX, as igrejas paroquiais, com seus templos e liturgias festivas, eram
os principais espaços de sociabilidade da população e forneciam eficazes
estruturas de organização cívica; justamente por isso, podiam servir como
espaços políticos incontornáveis para o Brasil independente. Os bispos também
deram sua contribuição ao processo emancipatório: por exemplo, o bispo do Pará,
dom Romualdo de Souza Coelho (1762-1841), que foi deputado nas Cortes de
Lisboa, contribuiu para que a província do Pará aceitasse a independência do
Brasil, em 1823, depois de alguma resistência. Além disso, os bispos foram
peças-chave nas juntas governativas provisórias, muitas das quais – como nas
províncias do Pará, Maranhão, Rio de Janeiro, São Paulo e Mato Grosso –
presididas por prelados diocesanos (SANTIROCCHI, 2021, p. 1003)
É claro
que a atuação do clero nos assuntos de Estado era facilitada pelo regime de
padroado civil da Igreja – afinal, os bispos e padres faziam parte da
administração pública e compunham os quadros do funcionalismo do Estado, como
servidores de carreira (os párocos, por sinal, eram concursados, gozavam de
estabilidade e recebiam salários fixos). Ocorre que, no processo de
independência e na organização do regime político constitucional, os clérigos
participaram sobretudo por convicção política e, como podemos notar, agiram
individualmente, sendo escolhidos como representantes do eleitorado: não foram
eleitos porque eram padres, mas porque tinham ideias políticas compatíveis com
o sentir de seus eleitores.
3. A Igreja católica e a oposição política ao regime monárquico
Se é
fato que, no Brasil, Igreja e Estado formavam um todo, política e
administrativamente, não é verdade que a “Igreja” formava um bloco homogêneo e
foi apoiadora incondicional do regime. “Dilatar a fé e o império” representou
mais conflitos do que harmonia na cooperação entre a Coroa e a Igreja
(ROSENDAHL; CORRÊA, 2006). Gilberto Freyre considera ainda que o período
imperial brasileiro foi um momento importante para que a Igreja católica
conseguisse contornar, às vezes até reverter, os efeitos do padroado régio, por
exemplo, diminuindo o peso das oligarquias regionais e apontando os excessos do
governo sobre as ações eclesiásticas (FREYRE, 2004, p. 125). Cada uma dessas
medidas custou muito esforço da parte da Igreja e significou posturas
deliberadamente críticas em relação ao poder.
Como a
formação do clero no Brasil, durante o século XIX, era muito diversificada, até
em termos teológicos, o pensamento clerical também era plural. Muitos padres,
formados em universidades laicas e de inspiração iluminista, foram ardorosos
defensores do republicanismo e participaram de revoltas republicanas, seja em
Pernambuco (Revolução Pernambucana de 1817), no Rio Grande do Sul (Revolução
Farroupilha de 1835), em Minas Gerais e São Paulo (Revolução Liberal de 1842).
O número expressivo de padres liberais e republicanos no clero brasileiro
constituía um problema para o Estado monarquista: Dom Pedro II, por exemplo,
para diminuir a oposição política advinda do clero, retirou das paróquias (e
dos párocos) o controle das zonas eleitorais em 1842 e, desde então, passou a
promover os clérigos que considerava menos opositores do regime.
Sucede
que esses clérigos não republicanos ou liberais – os quais, a princípio,
pareciam menos críticos à monarquia – revelaram-se rapidamente um empecilho
para a continuidade do padroado. Descontentes com o envolvimento do clero com
as políticas partidárias e as disputas regionais, esses padres antiliberais
foram aderindo, desde 1840, às propostas teológicas do chamado ultramontanismo,
um movimento europeu “de reação a algumas correntes teológicas e eclesiásticas,
ao regalismo dos Estados católicos, às novas tendências políticas desenvolvidas
após a Revolução Francesa e à secularização da sociedade moderna” (SANTIROCCHI,
2010, p. 24), propostas que se afinavam com o magistério de papas como Pio IX e
Leão XIII. Portanto, se Dom Pedro II supunha que elevar ao episcopado apenas os
padres ultramontanos, como Antônio José Ferreira Viçoso (bispo de Mariana) ou
Antônio Joaquim de Melo (bispo de São Paulo), iria favorecer a causa da
monarquia, logo percebeu que havia sido uma péssima escolha, pois foi sob os
auspícios do ultramontanismo que a eclesiologia papal veio a minar as bases do
padroado eclesiástico no Brasil. O clero ultramontano não pretendia derrubar a
monarquia, mas, ao querer retirar dela o controle sobre a Igreja, privava-a de
uma de suas colunas de sustentação, o que não deixa de ser uma segunda forma,
indireta, de oposição ao regime.
Curiosamente,
a teologia latino-americana contemporânea, que censura a conivência da Igreja
com o regalismo, costuma censurar também o ultramontanismo, como se fosse um movimento
conservador e de mentalidade excessivamente clerical. Não se trata, mais uma
vez, de julgar o passado, mas de compreender sua lógica. Ainda que, de fato, as
teses ultramontanas confrontassem aspectos importantes do mundo moderno, elas
foram importantes, por exemplo, para diminuir a força do regionalismo, que
dividia as Igrejas locais, e para criar as condições necessárias para que o
episcopado latino-americano encontrasse alguma convergência, apesar das
barreiras do nacionalismo que separavam a Igreja no Brasil das demais Igrejas
latino-americanas.
Foi sob
inspiração ultramontana que se realizou o Concílio Plenário da América Latina,
em 1899, o qual – criando uma consciência de comunhão intereclesial no
continente – abriu o precedente para que fosse fundado o Conselho Episcopal
Latino-americano (Celam) durante a Conferência do Rio de Janeiro, em 1955. Não
nos esqueçamos de que a guinada eclesiológica realizada pela Conferência de
Medellín (1968), na qual a Igreja fez a “opção preferencial pelos pobres”,
denunciando o autoritarismo das ditaduras militares, está na continuidade, não
na ruptura, com essa trajetória de crítica eclesial aos abusos do poder.
Referências bibliográficas
AZEVEDO, Thales de. Igreja
e Estado em tensão e crise: a conquista espiritual e o padroado na
Bahia. São Paulo: Ática, 1978.
BRASIL. Coleção
das leis do império
do Brasil de 1824. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1886.
Parte 1.
FERREIRA, Manoel Rodrigues. A evolução do sistema eleitoral brasileiro. Brasília:
Secretaria de Documentação e Informação do TSE, 2005.
FREYRE, Gilberto. Sobrados
e mucambos: decadência do patriarcado e desenvolvimento do urbano.
São Paulo: Global, 2004.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras,
1995.
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ROSENDAHL, Zeny; CORRÊA, Roberto Lobato. Difusão e territórios
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http://www.ub.edu/geocrit/sn/sn-218-65.htm. Acesso em: 9 fev. 2022.
SANTIROCCHI, Ítalo Domingos. Uma questão de revisão de
conceitos: romanização – ultramontanismo – reforma. Temporalidades:
Revista de História da UFMG, Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 24-33, 2010.
SANTIROCCHI, Ítalo Domingos. Religião e política no século XIX:
o Brasil pós proclamação da independência. Entrevistadora: Anna Karolina Vilela
Siqueira. Temporalidades:
Revista de História da UFMG, Belo Horizonte, v. 13, n. 2, p. 999-1007, 2021.
[1] “Brazil”, no original. Neste e em
outros casos, nesta edição, a grafia das referências e citações foi atualizada
segundo o Acordo Ortográfico em vigor. Foram mantidas, porém, as padronizações
de maiúsculas e minúsculas conforme o original.
André Luis Pereira Miatello*
*é historiador e professor da Universidade Federal de Minas
Gerais. Doutor em História Social (USP) e pós-doutor em Teologia (PUCPR),
dedica-se à pesquisa sobre a história do cristianismo, particularmente na
interface entre religião e política. E-mail: andremiatello@gmail.com
https://www.vidapastoral.com.br/edicao/a-independencia-do-brasil-e-a-igreja-catolica/
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