A herança e a fome
O patrimônio que o filho menor recebeu do Pai é
a inteligência, a mente, a memória, o engenho e tudo o que Deus nos deu para
que O conhecêssemos e Lhe déssemos culto. Tendo recebido este patrimônio, “partiu para um país muito distante”.
Distância significa: o esquecimento de seu Criador. “Dissipou sua herança vivendo
dissolutamente”: gastando e não ajuntando; malbaratando tudo o que
tinha e não adquirindo o que não tinha, isto é, consumindo toda sua capacidade
em luxúria, em ídolos, em todo tipo de desejos perversos, aos que a Verdade
denominou meretrizes.
Não é de admirar que essa orgia acabasse em
fome. “Sobreveio àquela região uma grande fome”; fome não de pão visível mas da
verdade invisível. E, por causa da fome, “foi
pôr-se a serviço de um dos senhores daquela região”: entenda-se o
diabo, o senhor dos demônios, sob cujo poder caem todos os curiosos , pois
a curiositas é
o pestilento abandono da verdade.
À margem de Deus, por entregar-se a seus
próprios recursos, foi submetido à servidão e lhe tocou o ofício de apascentar
porcos, o que significa a servidão mais extrema e imunda que costuma alegrar os
demônios: não foi por acaso que o Senhor, quando expulsou a legião dos
demônios, permitiu que entrassem na piara de porcos. Alimentava-se então das
vagens de porcos sem poder saciar-se. Vagens são as vistosas doutrinas do
mundo: servem para ostentar mas não para sustentar; alimento digno para porcos,
mas não para homens: próprias para dar aos demônios deleitação, mas não aos
fiéis justificação.
Até que, por fim, tomou consciência do lugar em
que tinha caído; do quanto tinha perdido; Quem tinha ofendido e a quem se tinha
submetido. Reparai no que diz o Evangelho: “Entrando em si…”; primeiramente, voltou-se
para si e só assim pôde voltar para o pai. Dizia talvez: “O meu coração me abandonou (isto é:
saí de mim mesmo)” (Sl 40,13) ; daí que fosse necessário,
antes, voltar para si mesmo e assim perceber que se encontrava longe do pai. É
o que diz a Escritura quando increpa a alguns, dizendo: “Voltai, pecadores, ao coração! (isto
é: voltai, pecadores, a vós mesmos!)” (Is 46,8). Voltando para
si mesmo, encontrou-se miserável: “Encontrei,
diz ele, a tribulação e a dor e invoquei o nome do Senhor” (Sl
116,3-4). “Quantos
empregados, diz ele, há na casa de meu pai, que têm pão em abundância, e eu,
aqui, a morrer de fome!”.
Quão
próxima está a misericórdia de Deus daquele que se confessa!
Levantou-se e voltou. Ele, caído por terra depois de
contínuos tropeços. O pai o vê ao longe e sai-lhe ao encontro. É dele que fala
o Salmo: “Entendeste
meus pensamentos de longe” (Sl 139,2). Que pensamentos?
Aqueles que o filho tinha em seu interior: “Levantar-me-ei e irei a meu pai, e dir-lhe-ei: Meu pai,
pequei contra o céu e contra ti; já não sou digno de ser chamado teu filho;
trata-me como a um dos teus empregados”. Ele ainda nada tinha
dito, só pensava em dizer. O pai, porém, ouvia como se o filho já o estivesse
dizendo.
Por vezes, em meio a uma tribulação ou tentação,
alguém pensa em orar, e, no próprio ato de pensar o que irá dizer a Deus na
oração, considera que é filho e que, como tal, tem direito a reivindicar a
misericórdia do Pai. E diz de si para si: “Direi a meu Deus isto e aquilo; não
temo que, em lhe dizendo isto, e chorando, não seja eu atendido pelo meu Deus”.
Geralmente, Deus já o está atendendo quando ele diz estas coisas; e mesmo
antes, quando as cogita, pois mesmo o pensamento não está oculto ao olhar de
Deus. Quando o homem delibera orar, já lá está Aquele que lá estará quando ele
começar a oração.
E assim se diz em outro Salmo: “Eu disse: confessarei minha
iniquidade ao Senhor” (Sl 32,5). Vede como se trata ainda
de algo interior a ele, de um mero projeto e, contudo, acrescenta
imediatamente: “E tu já
perdoaste a impiedade de meu coração” (Sl 32,5). Quão próxima
está a misericórdia de Deus daquele que se confessa! Não, Deus não está longe
de quem tem um coração contrito, como está escrito: “Deus está próximo dos que trituram
seu coração” (Sl 34,19). E neste triturar seu coração no país
da penúria, retornava ao coração para moê-lo. Soberbo, abandonara seu coração;
irado com santa indignação, a ele retorna.
Aquelas práticas próprias do penitente que verdadeiramente se
arrepende
Indignou-se contra si mesmo, contra o mal que há em si, para
se emendar; retornou para merecer o bem do pai. Indignou-se conforme a
sentença: “Irai-vos
para não pecar” (Sl 4,5). Pois quem está arrependido fica
irado e, por estar indignado consigo mesmo, se pune. Daí surgem aquelas
práticas próprias do penitente que verdadeiramente se arrepende,
verdadeiramente se dói, sente ira contra si mesmo. Certamente, é indício dessa
ira o bater no peito: o que a mão faz externamente, a consciência o faz
internamente: golpeia-se nos pensamentos, ou melhor, produz a morte em si
mesmo. E, matando-se, oferece a Deus o “sacrifício
de um espírito atribulado. Deus não despreza um coração contrito e humilhado” (Sl
51,19). E, assim, raspando, quebrando, humilhando seu coração, leva-o à morte.
Embora tivesse ainda somente a disposição de
falar ao pai, cogitando em seu interior: “Levantar-me-ei
e irei a meu pai, e dir-lhe-ei…”, o pai, que de longe já conhece
essas cogitações, foi ao seu encontro. Que significa “ir ao encontro” senão
antecipar-se pela misericórdia? Pois, “estava
ainda longe, quando seu pai o viu, e, movido pela misericórdia, correu-lhe ao
encontro”. Por que foi movido pela misericórdia? Porque o filho
tinha confessado sua miséria. “E
correndo-lhe ao encontro, lançou-se-lhe ao pescoço”, isto é, pôs o
braço sobre o pescoço dele. […]
A
veste, o anel e os calçados
E o pai ordena que o vistam com a primeira veste, aquela que
Adão perdera ao pecar. Tendo recebido o filho em paz, tendo-o beijado, ordena
que lhe deem uma veste: a esperança de imortalidade, conferida no batismo.
Ordena que lhe deem um anel, penhor do Espírito Santo; calçado para os pés,
como preparação para o anúncio do Evangelho da paz, para que sejam formosos os
pés dos que anunciam a boa nova.
Estas coisas Deus faz através de seus servos,
isto é, os ministros da Igreja. Acaso eles podem, por si próprios, dar veste,
anel e calçados? Não, apenas cumprem seu ministério, desempenham seu ofício;
quem dá é Aquele de cujo depósito e de cujo tesouro são extraídos estes dons.
Mandou também matar o bezerro cevado, isto é,
que fosse admitido à mesa em que o alimento é Cristo morto. Mata-se o bezerro
para todo aquele que, de longe, vem para a Igreja, na qual se prega a morte de
Cristo e no Seu corpo o que vem é admitido. Mata-se o bezerro cevado porque o
que se tinha perdido foi encontrado.
https://www.veritatis.com.br/sermao-sobre-a-parabola-do-filho-prodigo/#.XJttbJhKiUk
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