A
pandemia e um novo humanismo
Por
Ercilia Simone D. Magaldi*
Vamos
refletir sobre a pandemia e o novo humanismo. Vivemos realmente um humanismo?
Reconhecemos no outro nossa irmandade? Essa experiência aterradora poderá nos
tornar mais humanos? Conseguiremos ressignificar a vida e nossas relações?
Introdução
Vivemos uma era de
grandes transformações. A comunicação e a tecnologia transformaram o planeta.
Levamos milhões de anos para nos adaptarmos à Terra e, nos últimos 50 anos,
mudamos tanto nosso entorno, que buscamos novas adaptações.
Ao pensarmos no
manejo do plantio e na alimentação, no transporte, nos meios de comunicação e
no avanço da medicina e das ciências, poderíamos acreditar que chegamos ao
apogeu evolutivo. Ao Ponto Ômega, no dizer de Teilhard de Chardin.
Que humanismo
vivíamos antes da pandemia, a qual está mudando todas as nossas relações?
Poucos com tanto, e tantos com tão pouco. Onde a fraternidade, a liberdade e a
igualdade se escondiam? Numa terra tão promissora, esquecíamos tantos
despossuídos, retirantes, desabrigados, famintos, prisioneiros de sistemas
injustos e tantas mulheres violadas, crianças abandonadas… Tanto sofrimento, e
nós – a maioria de nós – cegos para todos eles.
Vamos fazer um
percurso através desses questionamentos.
1.
Humanidade
e humanismo
Nossa
humanidade está cega na alma, é uma humanidade que mata e morre por desacordos
egoísticos. Uns lutam em nome de Deus, como se fosse possível Deus não ser uno.
Outros lutam pelo poder. Carl Gustav Jung diz: “Pela lógica, o contrário do
amor é o ódio; o contrário de Eros, Phobos (o medo). Mas, psicologicamente, é a
vontade de poder. Onde impera o amor, não existe vontade de poder; e onde o
poder tem precedência, aí falta o amor” (JUNG, 2006, § 78). Grande verdade:
poder e amor não coexistem. Um exemplo vivo é o papa Francisco. Embora seja o
pontífice, o dirigente de toda a Igreja católica, segue aquele que lhe deu o
nome: São Francisco de Assis, o Poverello,
O Pobrezinho de Deus. Seu exemplo é maior que qualquer título que lhe possa ser
outorgado. O papa vê, não é cego à fraternidade, à igualdade e à liberdade.
Como diz Chardin (1995), não basta ter olhos, é preciso saber ver. O papa se
faz presente com seu testemunho de fé. Ele não tem vontade de poder, mas tem
muito amor. Um exemplo para a humanidade que se avizinha nestes novos tempos.
Como, porém, pensar a
humanidade? Diz Chardin (1995, p. 278):
Humanidade: objeto de
uma fé muitas vezes ingênua, mas cuja magia, mais forte do que todas as
vicissitudes e todas as críticas, continua a atuar com a mesma força de sedução
tanto sobre as almas das massas atuais como sobre os cérebros da
“intelligenzia”. Quer se participe de seu culto, quer se ridicularize esse
mesmo culto, quem pode, ainda hoje, escapar à obsessão, ou mesmo à ascendência
da ideia de Humanidade?
A humanidade causa
atração, sedução. E quanto ao humanismo, o que entendemos por isso?
O humanismo surge na
Itália, por volta do século XIV, como um movimento literário e filosófico, e
acaba por se espalhar por toda a Europa, originando a cultura moderna.
Caracteriza-se também como qualquer movimento filosófico que considere como
fundamento a natureza humana e os limites e interesses do ser humano. Ao longo
da história, esse conceito – que começa em Protágoras: “O homem é a medida de
todas as coisas” – sofreu alterações e acréscimos da parte de vários autores
(ABBAGNANO, 2004).
Quais os limites e
interesses do ser humano do século XXI? Somos tão heterogêneos. Tão distintos
em cultura, moral e política… Como avaliar o humanismo segundo os padrões
contemporâneos?
Como
disse Thomas Hobbes, “o homem é o lobo do próprio homem”. É verdade. Temos uma
moral (costumes e leis de uma época para determinado povo) própria do ego
(centro da consciência, responsável pela percepção corporal e pela história de
vida; atua se relacionando com o mundo interno, do inconsciente, e com o mundo
externo, dos fenômenos que nos envolvem, e sua atuação é discriminatória por
excelência). Temos também o Self (centro
e totalidade psíquica, corresponde à imagem de Deus em nós, aquele que
verdadeiramente dirige nossos passos), o qual, diversamente do ego, é ético – e
a ética é atemporal e não espacial; podemos dizer que é a discriminação
suprema. Assim, vemos o ser humano muito desconectado dessa esfera da
totalidade psíquica, muito centrado no próprio ego, apartado de uma esfera
gigante da humanidade.
O ser humano
“egoísta”, centrado nos interesses do próprio ego, pensa, antes de tudo – e
algumas vezes, por infelicidade, unicamente –, em seus desejos e ambições. O
outro não lhe afeta. Pura ilusão. Na esfera do inconsciente coletivo, somos
todos UM. Não temos um inconsciente coletivo, é ele que nos tem. Esse
inconsciente coletivo contém em si toda herança espiritual da evolução da
humanidade. Como diz Jung, ele nasce sempre de novo na estrutura cerebral de
cada um de nós. Não só a mitologia e as lendas constituem esse inconsciente
coletivo, mas também toda a experiência repetitiva e fatos relevantes
(arquetípicos) da história.
Dessa maneira, não
estamos nunca separados dos outros seres humanos, mas somos internamente
afetados por tudo que acontece no mundo. A separação é uma ilusão da
consciência; no íntimo, estamos todos conectados, influenciando e sendo
influenciados. Os sofredores de todo o planeta estão em nós. Os aflitos dos
países em conflito, os famintos das periferias, os drogados exilados da
humanidade, os atípicos, os desesperados, os doentes, os moribundos… Todos
fazem parte do mesmo inconsciente coletivo, são influenciados por nós, mas
também nos influenciam. Somos uma só humanidade, a separação é uma ilusão
egoica.
Nossas personas (“máscaras”
de adaptação coletiva, mediante as quais buscamos ser aceitos) não são nossa
personalidade, mas atores que atuam, por meio de nós, em papéis sociais. Muitas
vezes nos identificamos com esses personagens, perdendo a verdadeira noção de
quem somos realmente. Muito mais séria, contudo, é nossa relação com o mundo.
Vivemos de “projeções” do nosso mundo interno, nossa sombra (tudo que foi
contido, rejeitado ou impedido de se manifestar), nosso lado trevoso (porque
não está na luz da consciência), no qual existem tesouros de potenciais não
desenvolvidos, mas, principalmente, o mal em nós. Tudo que não pode ser
mostrado, que não é aceito, que é “pecado”. Portanto, somos luz e sombra, bem e
mal. Nossas polaridades nos fazem “humanos, demasiadamente humanos”, como diria
Nietzsche.
Se reconhecêssemos
isso, não daríamos curso a tantas discriminações, a tanto separatismo, a tanta
falta de fraternidade. A humanidade seria uma comunidade de irmandade. Afinal,
no íntimo, não somos tão diferentes daqueles que rejeitamos.
2.
Pandemia
Avançamos em áreas
primitivas, tomamos posse de lugares em que o ecossistema era preservado e
desconhecido e, com isso, abrimos as barreiras de proteção de espécimes nocivas
ao ser humano, das quais não tínhamos conhecimento.
Há alguns anos, o
mundo todo entrou em choque com uma possibilidade epidêmica do ebola, vírus
fatal ao ser humano. Conseguimos controlar. Agora, em era tão desenvolvida, em
que o ser humano avançou tanto em conhecimentos os mais diversos,
confrontamo-nos com uma pandemia.
O coronavírus chega
dizimando um número imenso de vidas. Cria pânico, medo, desestabiliza a
economia mundial, produz uma multidão de desempregados e famintos. E ainda não
acabou. Não sabemos a real proporção dos danos, as sequelas possíveis, as
mutações nos amedrontam porque desconhecemos o potencial dos males que podem
provocar.
Porém, o mais cruel,
o que faz doer, desacreditar no ser humano, é o descaso com que vários
dirigentes encaram e enfrentam o problema. Ironizar os sofredores e mortos,
desconsiderar o sofrimento de tantas famílias, propor saídas que a própria
ciência justifica como não corretas, em meio a tanto terror, ignorar as saídas
preventivas, como as vacinas, as máscaras, o isolamento, desviar dinheiro
público para fins escusos, dinheiro da saúde negociado a preço de sangue, de
morte, de descaso, isso é o Mal.
3.
O
Mal
O
mal é o oposto do bem na doutrina maniqueísta, donde veio Agostinho (conhecido
por muitos como o Platão cristão). Ele, como convertido, precisou rever a natureza
do mal. Nos Solilóquios, reflete:
“Desejo conhecer Deus e a alma. E nada mais? Nada mais, absolutamente”
(AGOSTINHO, 2021, I, 2). Deus e alma não requerem, para Agostinho, pesquisas
distintas, porque Deus se encontra na própria alma.
Deus está na alma e
revela-se na mais recôndita interioridade da própria alma. Procurar a Deus
significa procurar a alma e procurar a alma significa reclinar-se sobre si
mesmo, reconhecer-se, na própria natureza espiritual, confessar-se […]. Esta
atitude não consiste em descrever para si e os outros as alternativas da
própria vida interna ou externa, mas em pôr a claro todos os problemas que
constituem o núcleo da própria personalidade (ABBAGNANO, 1969, p. 205).
Após seus anos de
inquietação, em que se dissipou e divagou desordenadamente, Agostinho percebe
que tudo o que buscava e de que precisava realmente era a verdade e que essa
verdade é o próprio Deus:
Não
saias de ti mesmo, volta a ti próprio, no interior do homem habita a verdade; e
se verificas que a tua natureza é mutável, transcende-te para lá de ti mesmo (De vera rel., 39).
Apenas o retorno a si próprio, o encerrar-se na própria interioridade é
verdadeiramente o abrir-se à verdade e a Deus. É necessário chegar até o mais
íntimo e escondido núcleo do eu para encontrar, mais além dele, a verdade de
Deus (ABBAGNANO, 1969, p. 206-207).
Deus é, pois, a
incorruptibilidade, na medida em que é o próprio Ser. Donde, então, podemos
imaginar a natureza do mal? O mal absoluto é o nada absoluto. O mal é o pecado
e a deficiência da vontade que renuncia ao ser e se entrega ao que é inferior.
Assim:
Jung
ressaltou a função moral da reflexão humana e da consciência no processo em que
a imagem do deus patriarcal se transforma e concorre para uma estrutura
interior do eu. O modelo de Jung não omite uma percepção consciente da sombra,
que na teologia é expressa pela doutrina da substancialidade do mal (A psychological approach to the
Trinity, p. 134; 136). Uma das raízes mais fortes do mal é a
inconsciência. Eu gostaria que ainda estivesse nos Evangelhos a declaração de
Cristo: “Homem, se sabes o que fazes, és bendito, mas, se não sabes, és maldito
e um transgressor da lei”. Esse bem poderia ser o lema de uma nova moralidade
(SCHWARTZ-SALANT, 1992, p. 121).
Tomás de Aquino
também admite a doutrina platônico-agostiniana da não substancialidade do
mal: “o mal não é senão ausência do bem […]. O mal é de duas espécies:
pena e culpa”.
Jung
não compactua com a doutrina do mal como privatio boni, que entende que o mal é simples
ausência do bem. Para Jung, é o contrário. Ele defende a realidade substancial
do lado sombrio da psique. Do ponto de vista mitológico, este lado sombrio é o
Demônio. Além disso, Jung acentuava que “a sombra e a vontade em oposição é a
condição necessária a toda realização”. Só com uma integração consciente da
sombra é possível a efetivação do numinoso positivo. Isso significa que um
indivíduo vive com uma percepção aguda de sua natureza sombria, na qual há um
alinhamento com a atração pela morte. Essa dinâmica inclui características
psicopáticas que atuam sem qualquer sentido moral. Quando a sombra e as suas
consequências destrutivas são integradas, o alinhamento consciente com o numinoso
positivo torna-se uma questão ética, uma questão de escolha. Deve-se tomar o
partido, ou de Deus, ou do Diabo. Só com a integração da sombra pode, de fato,
o indivíduo desenvolver a força de ego necessária a um relacionamento ativo com
o numinoso (SCHWARTZ-SALANT, 1992, p. 121).
Não
podemos ignorar o mal para não sermos tomados por ele, como um complexo que se
constela e assume o lugar do ego, porque, sim, o mal também está em nós;
precisamos ampliar a consciência para não sucumbirmos ao nosso lado sombrio. Só
com um processo de vontade consciente poderemos nos render ao Self (a imagem
de Deus em nós) e adquirir forças para enfrentar esse lado nefasto em nós e na
sociedade, principalmente em relação aos homens de poder. Empatia, essa é a
chave. Ver o outro, sentir o outro como o irmão que, em verdade, ele é.
Apesar do Mal que,
com tanta força, se constelou durante a pandemia, devemos buscar o Bom, o Belo
e o Verdadeiro, e reverter, quanto possível, o desvario que atualmente assola a
humanidade.
Conclusão
Boff (2000, p. 66-67)
nos traz nova visão de mundo concebida por cientistas modernos:
O
grupo de cientistas de Princeton e Pasadena que buscam uma reaproximação entre
ciência, filosofia e religião, autodenominando-se ambiguamente “neognósticos”,
sustenta, como tese fundamental de sua basic
cosmology, que “o mundo é dominado pelo Espírito e é feito pelo
Espírito”. A metáfora dessa nova cosmologia é a do jogo. Como diz um cientista
teólogo da Comunidade Europeia, “o jogo nos comunica a ideia de complexidade,
de lógica não linear, mas também da implicação essencial dos jogadores e de sua
criatividade; o ser humano não é mais espectador passivo de um mundo do qual se
sente excluído”. Essa cosmologia é integradora.
É oposta à sociedade
misógina, opressora e excludente. É uma cosmologia que reinstaura a relação, o
jogo. Este é o ensinamento da nova física: nada existe sem relação, e tudo
depende de opções, do jogo que escolhemos jogar.
Essa é a chave. O
novo humanismo deve principiar na “relação”, no “jogo” do ser humano com seus
iguais, com a natureza e com Deus. Entendemos que o Espírito permeia todo o
cosmo.
A pandemia deve
servir para nossa evolução espiritual. Precisamos aprender a servir, como diz
Waldemar Magaldi Filho em suas aulas: “Quem não vive para servir não serve para
viver”. Que todas essas mortes, esse sofrimento, esse isolamento nos aproximem
do Sagrado para reconhecermos o mito do nosso Significado, o propósito da vida
de cada um de nós.
Não podemos voltar
aos velhos costumes egocêntricos, separatistas. Precisamos desenvolver novo
modo de “jogar”, em que cada um é imprescindível, em que nenhum ser fica fora
da jogada, porque absolutamente esta é a regra: todos juntos.
O
antídoto para o mal depende da conscientização de que somos luz e sombra, e de que
o mal e o bem são opostos complementares que coabitam na nossa essência, para
que possamos agir com a consciência e a lucidez da consequência dos nossos atos
e das nossas omissões, assim como discernir se estamos servindo a alma ou
apenas reproduzindo, cegamente, os padrões dominantes da persona materialista,
competitiva e egoísta presente neste sistema excludente e destrutivo.
Referências bibliográficas
ABBAGNANO, Nicola. Diccionario
de filosofía. 4. ed. Ciudad
de México: Fondo de Cultura Económica, 2004.
______. História
da filosofia. Lisboa: Presença, 1969. v. 2.
AGOSTINHO, Santo. Solilóquios. In: ______. Solilóquios. A vida feliz. São
Paulo: Paulus, 2021. (Patrística, 11).
BOFF, Leonardo. Ecologia,
mundialização, espiritualidade. São Paulo: Ática, 2000.
CHARDIN, Teilhard de. O
fenômeno humano. São Paulo: Cultrix, 1995.
JUNG, Carl G. Psicologia
do inconsciente. Petrópolis: Vozes, 2006.
SCHWARTZ-SALANT, Natan. A
personalidade limítrofe. São Paulo: Cultrix, 1992.
SÊNECA. Sobre
a brevidade da vida. São Paulo: Nova Alexandria, 1993.
Ercilia
Simone D. Magaldi*
*é
professora, filósofa, pedagoga, mestre pela PUC e doutora pela Umesp em Cultura
Religiosa. Diretora do Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa (Ijep). Autora
de Ordem e caos e Pitágoras, o mestre de Samos (Eleva Cultural).
https://www.vidapastoral.com.br/edicao/a-pandemia-e-um-novo-humanismo/
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