sábado, 17 de setembro de 2022

A PANDEMIA E UM NOVO HUMANISMO

 

A pandemia e um novo humanismo

Por Ercilia Simone D. Magaldi*

 

Vamos refletir sobre a pandemia e o novo humanismo. Vivemos realmente um humanismo? Reconhecemos no outro nossa irmandade? Essa experiência aterradora poderá nos tornar mais humanos? Conseguiremos ressignificar a vida e nossas relações?

 

Introdução

 

Vivemos uma era de grandes transformações. A comunicação e a tecnologia transformaram o planeta. Levamos milhões de anos para nos adaptarmos à Terra e, nos últimos 50 anos, mudamos tanto nosso entorno, que buscamos novas adaptações.

Ao pensarmos no manejo do plantio e na alimentação, no transporte, nos meios de comunicação e no avanço da medicina e das ciências, poderíamos acreditar que chegamos ao apogeu evolutivo. Ao Ponto Ômega, no dizer de Teilhard de Chardin.

Que humanismo vivíamos antes da pandemia, a qual está mudando todas as nossas relações? Poucos com tanto, e tantos com tão pouco. Onde a fraternidade, a liberdade e a igualdade se escondiam? Numa terra tão promissora, esquecíamos tantos despossuídos, retirantes, desabrigados, famintos, prisioneiros de sistemas injustos e tantas mulheres violadas, crianças abandonadas… Tanto sofrimento, e nós – a maioria de nós – cegos para todos eles.

Vamos fazer um percurso através desses questionamentos.

1.    Humanidade e humanismo

 

Nossa humanidade está cega na alma, é uma humanidade que mata e morre por desacordos egoísticos. Uns lutam em nome de Deus, como se fosse possível Deus não ser uno. Outros lutam pelo poder. Carl Gustav Jung diz: “Pela lógica, o contrário do amor é o ódio; o contrário de Eros, Phobos (o medo). Mas, psicologicamente, é a vontade de poder. Onde impera o amor, não existe vontade de poder; e onde o poder tem precedência, aí falta o amor” (JUNG, 2006, § 78). Grande verdade: poder e amor não coexistem. Um exemplo vivo é o papa Francisco. Embora seja o pontífice, o dirigente de toda a Igreja católica, segue aquele que lhe deu o nome: São Francisco de Assis, o Poverello, O Pobrezinho de Deus. Seu exemplo é maior que qualquer título que lhe possa ser outorgado. O papa vê, não é cego à fraternidade, à igualdade e à liberdade. Como diz Chardin (1995), não basta ter olhos, é preciso saber ver. O papa se faz presente com seu testemunho de fé. Ele não tem vontade de poder, mas tem muito amor. Um exemplo para a humanidade que se avizinha nestes novos tempos.

Como, porém, pensar a humanidade? Diz Chardin (1995, p. 278):

Humanidade: objeto de uma fé muitas vezes ingênua, mas cuja magia, mais forte do que todas as vicissitudes e todas as críticas, continua a atuar com a mesma força de sedução tanto sobre as almas das massas atuais como sobre os cérebros da “intelligenzia”. Quer se participe de seu culto, quer se ridicularize esse mesmo culto, quem pode, ainda hoje, escapar à obsessão, ou mesmo à ascendência da ideia de Humanidade?

A humanidade causa atração, sedução. E quanto ao humanismo, o que entendemos por isso?

O humanismo surge na Itália, por volta do século XIV, como um movimento literário e filosófico, e acaba por se espalhar por toda a Europa, originando a cultura moderna. Caracteriza-se também como qualquer movimento filosófico que considere como fundamento a natureza humana e os limites e interesses do ser humano. Ao longo da história, esse conceito – que começa em Protágoras: “O homem é a medida de todas as coisas” – sofreu alterações e acréscimos da parte de vários autores (ABBAGNANO, 2004).

Quais os limites e interesses do ser humano do século XXI? Somos tão heterogêneos. Tão distintos em cultura, moral e política… Como avaliar o humanismo segundo os padrões contemporâneos?

Como disse Thomas Hobbes, “o homem é o lobo do próprio homem”. É verdade. Temos uma moral (costumes e leis de uma época para determinado povo) própria do ego (centro da consciência, responsável pela percepção corporal e pela história de vida; atua se relacionando com o mundo interno, do inconsciente, e com o mundo externo, dos fenômenos que nos envolvem, e sua atuação é discriminatória por excelência). Temos também o Self (centro e totalidade psíquica, corresponde à imagem de Deus em nós, aquele que verdadeiramente dirige nossos passos), o qual, diversamente do ego, é ético – e a ética é atemporal e não espacial; podemos dizer que é a discriminação suprema. Assim, vemos o ser humano muito desconectado dessa esfera da totalidade psíquica, muito centrado no próprio ego, apartado de uma esfera gigante da humanidade.

O ser humano “egoísta”, centrado nos interesses do próprio ego, pensa, antes de tudo – e algumas vezes, por infelicidade, unicamente –, em seus desejos e ambições. O outro não lhe afeta. Pura ilusão. Na esfera do inconsciente coletivo, somos todos UM. Não temos um inconsciente coletivo, é ele que nos tem. Esse inconsciente coletivo contém em si toda herança espiritual da evolução da humanidade. Como diz Jung, ele nasce sempre de novo na estrutura cerebral de cada um de nós. Não só a mitologia e as lendas constituem esse inconsciente coletivo, mas também toda a experiência repetitiva e fatos relevantes (arquetípicos) da história.

Dessa maneira, não estamos nunca separados dos outros seres humanos, mas somos internamente afetados por tudo que acontece no mundo. A separação é uma ilusão da consciência; no íntimo, estamos todos conectados, influenciando e sendo influenciados. Os sofredores de todo o planeta estão em nós. Os aflitos dos países em conflito, os famintos das periferias, os drogados exilados da humanidade, os atípicos, os desesperados, os doentes, os moribundos… Todos fazem parte do mesmo inconsciente coletivo, são influenciados por nós, mas também nos influenciam. Somos uma só humanidade, a separação é uma ilusão egoica.

Nossas personas (“máscaras” de adaptação coletiva, mediante as quais buscamos ser aceitos) não são nossa personalidade, mas atores que atuam, por meio de nós, em papéis sociais. Muitas vezes nos identificamos com esses personagens, perdendo a verdadeira noção de quem somos realmente. Muito mais séria, contudo, é nossa relação com o mundo. Vivemos de “projeções” do nosso mundo interno, nossa sombra (tudo que foi contido, rejeitado ou impedido de se manifestar), nosso lado trevoso (porque não está na luz da consciência), no qual existem tesouros de potenciais não desenvolvidos, mas, principalmente, o mal em nós. Tudo que não pode ser mostrado, que não é aceito, que é “pecado”. Portanto, somos luz e sombra, bem e mal. Nossas polaridades nos fazem “humanos, demasiadamente humanos”, como diria Nietzsche.

Se reconhecêssemos isso, não daríamos curso a tantas discriminações, a tanto separatismo, a tanta falta de fraternidade. A humanidade seria uma comunidade de irmandade. Afinal, no íntimo, não somos tão diferentes daqueles que rejeitamos.

2.    Pandemia

 

Avançamos em áreas primitivas, tomamos posse de lugares em que o ecossistema era preservado e desconhecido e, com isso, abrimos as barreiras de proteção de espécimes nocivas ao ser humano, das quais não tínhamos conhecimento.

Há alguns anos, o mundo todo entrou em choque com uma possibilidade epidêmica do ebola, vírus fatal ao ser humano. Conseguimos controlar. Agora, em era tão desenvolvida, em que o ser humano avançou tanto em conhecimentos os mais diversos, confrontamo-nos com uma pandemia.

O coronavírus chega dizimando um número imenso de vidas. Cria pânico, medo, desestabiliza a economia mundial, produz uma multidão de desempregados e famintos. E ainda não acabou. Não sabemos a real proporção dos danos, as sequelas possíveis, as mutações nos amedrontam porque desconhecemos o potencial dos males que podem provocar.

Porém, o mais cruel, o que faz doer, desacreditar no ser humano, é o descaso com que vários dirigentes encaram e enfrentam o problema. Ironizar os sofredores e mortos, desconsiderar o sofrimento de tantas famílias, propor saídas que a própria ciência justifica como não corretas, em meio a tanto terror, ignorar as saídas preventivas, como as vacinas, as máscaras, o isolamento, desviar dinheiro público para fins escusos, dinheiro da saúde negociado a preço de sangue, de morte, de descaso, isso é o Mal.

3.    O Mal

 

O mal é o oposto do bem na doutrina maniqueísta, donde veio Agostinho (conhecido por muitos como o Platão cristão). Ele, como convertido, precisou rever a natureza do mal. Nos Solilóquios, reflete: “Desejo conhecer Deus e a alma. E nada mais? Nada mais, absolutamente” (AGOSTINHO, 2021, I, 2). Deus e alma não requerem, para Agostinho, pesquisas distintas, porque Deus se encontra na própria alma.

Deus está na alma e revela-se na mais recôndita interioridade da própria alma. Procurar a Deus significa procurar a alma e procurar a alma significa reclinar-se sobre si mesmo, reconhecer-se, na própria natureza espiritual, confessar-se […]. Esta atitude não consiste em descrever para si e os outros as alternativas da própria vida interna ou externa, mas em pôr a claro todos os problemas que constituem o núcleo da própria personalidade (ABBAGNANO, 1969, p. 205).

Após seus anos de inquietação, em que se dissipou e divagou desordenadamente, Agostinho percebe que tudo o que buscava e de que precisava realmente era a verdade e que essa verdade é o próprio Deus:

Não saias de ti mesmo, volta a ti próprio, no interior do homem habita a verdade; e se verificas que a tua natureza é mutável, transcende-te para lá de ti mesmo (De vera rel., 39). Apenas o retorno a si próprio, o encerrar-se na própria interioridade é verdadeiramente o abrir-se à verdade e a Deus. É necessário chegar até o mais íntimo e escondido núcleo do eu para encontrar, mais além dele, a verdade de Deus (ABBAGNANO, 1969, p. 206-207).

Deus é, pois, a incorruptibilidade, na medida em que é o próprio Ser. Donde, então, podemos imaginar a natureza do mal? O mal absoluto é o nada absoluto. O mal é o pecado e a deficiência da vontade que renuncia ao ser e se entrega ao que é inferior. Assim:

Jung ressaltou a função moral da reflexão humana e da consciência no processo em que a imagem do deus patriarcal se transforma e concorre para uma estrutura interior do eu. O modelo de Jung não omite uma percepção consciente da sombra, que na teologia é expressa pela doutrina da substancialidade do mal (A psychological approach to the Trinity, p. 134; 136). Uma das raízes mais fortes do mal é a inconsciência. Eu gostaria que ainda estivesse nos Evangelhos a declaração de Cristo: “Homem, se sabes o que fazes, és bendito, mas, se não sabes, és maldito e um transgressor da lei”. Esse bem poderia ser o lema de uma nova moralidade (SCHWARTZ-SALANT, 1992, p. 121).

Tomás de Aquino também admite a doutrina platônico-agostiniana da não substancialidade do mal:  “o mal não é senão ausência do bem […]. O mal é de duas espécies: pena e culpa”.

Jung não compactua com a doutrina do mal como privatio boni, que entende que o mal é simples ausência do bem. Para Jung, é o contrário. Ele defende a realidade substancial do lado sombrio da psique. Do ponto de vista mitológico, este lado sombrio é o Demônio. Além disso, Jung acentuava que “a sombra e a vontade em oposição é a condição necessária a toda realização”. Só com uma integração consciente da sombra é possível a efetivação do numinoso positivo. Isso significa que um indivíduo vive com uma percepção aguda de sua natureza sombria, na qual há um alinhamento com a atração pela morte. Essa dinâmica inclui características psicopáticas que atuam sem qualquer sentido moral. Quando a sombra e as suas consequências destrutivas são integradas, o alinhamento consciente com o numinoso positivo torna-se uma questão ética, uma questão de escolha. Deve-se tomar o partido, ou de Deus, ou do Diabo. Só com a integração da sombra pode, de fato, o indivíduo desenvolver a força de ego necessária a um relacionamento ativo com o numinoso (SCHWARTZ-SALANT, 1992, p. 121).

Não podemos ignorar o mal para não sermos tomados por ele, como um complexo que se constela e assume o lugar do ego, porque, sim, o mal também está em nós; precisamos ampliar a consciência para não sucumbirmos ao nosso lado sombrio. Só com um processo de vontade consciente poderemos nos render ao Self (a imagem de Deus em nós) e adquirir forças para enfrentar esse lado nefasto em nós e na sociedade, principalmente em relação aos homens de poder. Empatia, essa é a chave. Ver o outro, sentir o outro como o irmão que, em verdade, ele é.

Apesar do Mal que, com tanta força, se constelou durante a pandemia, devemos buscar o Bom, o Belo e o Verdadeiro, e reverter, quanto possível, o desvario que atualmente assola a humanidade.

Conclusão

 

Boff (2000, p. 66-67) nos traz nova visão de mundo concebida por cientistas modernos:

O grupo de cientistas de Princeton e Pasadena que buscam uma reaproximação entre ciência, filosofia e religião, autodenominando-se ambiguamente “neognósticos”, sustenta, como tese fundamental de sua basic cosmology, que “o mundo é dominado pelo Espírito e é feito pelo Espírito”. A metáfora dessa nova cosmologia é a do jogo. Como diz um cientista teólogo da Comunidade Europeia, “o jogo nos comunica a ideia de complexidade, de lógica não linear, mas também da implicação essencial dos jogadores e de sua criatividade; o ser humano não é mais espectador passivo de um mundo do qual se sente excluído”. Essa cosmologia é integradora.

É oposta à sociedade misógina, opressora e excludente. É uma cosmologia que reinstaura a relação, o jogo. Este é o ensinamento da nova física: nada existe sem relação, e tudo depende de opções, do jogo que escolhemos jogar.

Essa é a chave. O novo humanismo deve principiar na “relação”, no “jogo” do ser humano com seus iguais, com a natureza e com Deus. Entendemos que o Espírito permeia todo o cosmo.

A pandemia deve servir para nossa evolução espiritual. Precisamos aprender a servir, como diz Waldemar Magaldi Filho em suas aulas: “Quem não vive para servir não serve para viver”. Que todas essas mortes, esse sofrimento, esse isolamento nos aproximem do Sagrado para reconhecermos o mito do nosso Significado, o propósito da vida de cada um de nós.

Não podemos voltar aos velhos costumes egocêntricos, separatistas. Precisamos desenvolver novo modo de “jogar”, em que cada um é imprescindível, em que nenhum ser fica fora da jogada, porque absolutamente esta é a regra: todos juntos.

O antídoto para o mal depende da conscientização de que somos luz e sombra, e de que o mal e o bem são opostos complementares que coabitam na nossa essência, para que possamos agir com a consciência e a lucidez da consequência dos nossos atos e das nossas omissões, assim como discernir se estamos servindo a alma ou apenas reproduzindo, cegamente, os padrões dominantes da persona materialista, competitiva e egoísta presente neste sistema excludente e destrutivo.

 

Referências bibliográficas

 

ABBAGNANO, Nicola. Diccionario de filosofía. 4. edCiudad de México: Fondo de Cultura Económica, 2004.

______. História da filosofia. Lisboa: Presença, 1969. v. 2.

AGOSTINHO, Santo. Solilóquios. In: ______. Solilóquios. A vida feliz. São Paulo: Paulus, 2021. (Patrística, 11).

BOFF, Leonardo. Ecologia, mundialização, espiritualidade. São Paulo: Ática, 2000.

CHARDIN, Teilhard de. O fenômeno humano. São Paulo: Cultrix, 1995.

JUNG, Carl G. Psicologia do inconsciente. Petrópolis: Vozes, 2006.

SCHWARTZ-SALANT, Natan. A personalidade limítrofe. São Paulo: Cultrix, 1992.

SÊNECA. Sobre a brevidade da vida. São Paulo: Nova Alexandria, 1993.

 

Ercilia Simone D. Magaldi*

 

*é professora, filósofa, pedagoga, mestre pela PUC e doutora pela Umesp em Cultura Religiosa. Diretora do Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa (Ijep). Autora de Ordem e caos e Pitágoras, o mestre de Samos (Eleva Cultural).



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