ESTUDO
O MANDAMENTO
QUE CONDUZ À VIDA ETERNA
I.
INTRODUÇÃO GERAL
A liturgia deste domingo
nos confronta com o ensinamento de Jesus sobre o amor fraterno, supremo
mandamento da vida cristã. Trata-se do ponto fulcral da prática cristã. As
leituras apresentam dois aspectos principais: o que é amar e a quem se dirige
nosso amor? As duas perguntas fundem-se numa só compreensão: quem ama descobre
logo a quem amar. Como lema, que pode ser repetido na homilia e nos
comentários, sugerimos: “Torne-se próximo de seu irmão necessitado”, ou a
sabedoria popular: “A melhor maneira de ter amigos é ser amigo”.
II.
COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
1. I leitura (Dt 30,10-14)
A primeira leitura funciona como verdadeira abertura solene para a liturgia da
Palavra. O livro mais imponente da Torá, o Deuteronômio, ensina-nos que o
mandamento de Deus não está fora de nosso alcance. Deus fez de Israel seu povo,
não por este ser importante, mas por amor e fidelidade à sua promessa (Dt
7,7-8). O amor de Deus por Israel não tem explicação, mas tem consequências:
Israel deve amar a Deus com todas as suas forças (Dt 6,4-5). Deve escutar sua
voz e não se afastar de suas orientações; e, quando se afasta, deve “voltar”,
converter-se (30,10). E, se o povo diz que a Lei é difícil, Deus responde que
não: não é coisa de outro mundo. Está perto, ao alcance de quem o ama
(30,11-14; cf. Jr 31,33; Br 3,15-29; Rm 10,6-8).
Hoje importa redescobrir que lei e mandamentos não são coisas do passado,
inimigas da liberdade moderna. O termo que traduzimos por lei (torah) deveria,
na realidade, ser traduzido como ensinamento, instrução. É uma sabedoria (cf.
Sl 19 e Sl 119!). Ora, um bom conselho vale mais do que ouro. Para os teólogos
que redigiram o livro do Deuteronômio (no século VIII-VI a.C.), a Lei de Moisés
era inigualável tesouro de sabedoria, um rumo seguro para a vida, em todas as
circunstâncias. Para tê-la sempre diante dos olhos, deviam colocá-la numa faixa
amarrada na testa (Dt 6,8; cf. Ex 13,9 etc.). Os “deuteronomistas” enfrentavam
um tempo de afrouxamento em Israel, mais ou menos como nós, hoje. A quem achava
difíceis as orientações de Deus, respondiam: “Não é verdade. A Lei não é coisa
do outro mundo, ninguém a precisa procurar no céu ou no inferno, ela está perto
de ti”. Dificilmente poderia estar mais perto do que naquela faixa na testa.
Mas não é só por meio dessa faixa que ela pode estar perto. Ela é uma palavra
viva, lembrada continuamente pelos próprios profetas, que viviam no meio do
povo. E em Cristo ela se torna mais próxima do que nunca.
1.
Evangelho
(Lc 10,25-37)
No evangelho ouvimos o ensinamento do grande mandamento do amor e a parábola do
bom samaritano. O trecho faz parte de um conjunto do Evangelho de Lucas (Lc
10,26-11,13) que apresenta três exigências fundamentais do ser cristão: 1) o
“grande mandamento” do amor a Deus e ao próximo (10,25-37); 2) o “único
necessário” (10,38-42); 3) a “oração por excelência” (11,1-13). O “grande
mandamento” responde à pergunta pelo caminho da vida eterna: amar a Deus e o
próximo. Defrontamo-nos com um especialista da Lei que procurava, em meio à
multidão de prescrições, saber o que devia fazer para “herdar a vida eterna”, a
vida da era vindoura, do reino que Deus estabeleceria no mundo para sempre
(pois era assim que se concebia a vida eterna) (Lc 10,25-28; cf. Mt 22,35-40;
Mc 12,28-31). Jesus o remete à Lei ensinada por Moisés. Pergunta o que aí se
encontra. O escriba responde: amar a Deus acima de tudo (cf. Dt 6,5) e o
próximo como a si mesmo (cf. Lv 19,18). “É isso mesmo que deves fazer”,
responde Jesus. Novamente: não é coisa de outro mundo!
Depois, porém, o escriba pergunta quem é seu próximo. A resposta de Jesus
revoluciona suas categorias: o próximo não é um arbitrário “objeto de
caridade”; é todo homem, desde que eu me torne próximo dele. Todos nós estamos
de acordo em que devemos amar nosso próximo. Mas quem é ele? Minha velha tia
rica, prestes a ceder sua herança, ou meu empregado, com cuja família nada
tenho que ver? Visto que argumentar não adianta, Jesus conta uma história. Um
homem cai nas mãos de ladrões. Passa um sacerdote, mas não tem tempo para
parar, pois deve celebrar um sacrifício. Passa um especialista das leis de
pureza (um levita): este tem medo de sujar as mãos com o sangue do homem que
ficou semimorto na beira da estrada. Passa, depois, um inimigo, um samaritano,
talvez um comerciante concorrente do homem que foi assaltado. E esse
samaritano, inimigo dos judeus, cuida do homem à sua própria custa. Nesse ponto
da narrativa, Jesus pergunta não quem é o próximo a quem se devem fazer obras
caritativas, mas quem é o próximo do homem que foi assaltado. A inversão da
pergunta é significativa, porque o especialista da Lei é obrigado a responder
que um vil samaritano é o próximo de um judeu assaltado. Para todos nós, isso
significa: eu sou próximo de quem encontro no meu caminho, sou chamado a ser
solidário com ele, a me tornar próximo dele.
Ao analisar o texto, aparecem detalhes mais significativos ainda. O samaritano
“comiserou-se”, “aproximou-se”: uma linguagem que poderia ser aplicada ao
próprio Deus. Deus comiserou-se do ser humano, tornou-se próximo dele e
salvou-o à sua própria custa: custou a vida de seu Filho. O próximo, “aquele
que se comiserou do homem” (Lc 10,37), é Deus mesmo. “Vai e então faze a mesma
coisa”, e já não precisarás perguntar quem é teu próximo. E terás a vida
eterna, porque desde já estarás vivendo a vida de Deus mesmo.
Gostamos de escolher nossos próximos. Está errado. Somos próximos de quem
encontramos. Deus nos colocou perto deles para os tratarmos com o mesmo amor
gratuito que ele nos dedica.
2.
II
leitura (Cl 1,15-20)
A segunda leitura apresenta o belo hino cristológico da carta aos Colossenses.
Essa carta dá uma resposta à introdução de doutrinas falsas na comunidade.
Alguns ensinam que, além de Cristo, devem-se venerar outros seres
transcendentes, “espíritos” etc. É difícil ser livre! Por isso, Paulo realça o
lugar central exclusivo de Cristo. Ele nos redimiu, dando a sua vida até a
morte. Só compreenderemos bem isso quando formos conscientes de que Cristo é
também o criador, com o Pai. Ele assume nossa vida e nosso mundo não por fora,
mas por dentro. No íntimo do ser homem, ele vive a plenitude de ser Deus.
Quando todos chegarem a essa plenitude, a criação estará completa.
Esse hino é uma das obras-primas do Novo Testamento. A ideia principal é a
unidade da ordem da criação e da redenção, em Cristo. Ele é a cabeça da
redenção, assumindo a todos na sua glória, porque é também a cabeça da criação.
O hino expressa isso em termos que lembram fortemente o prólogo de João (Jo
1,1-18) e os textos que falam da Sabedoria como hipóstase unida a Deus desde
antes da criação do mundo (Pr 8,22-36; Eclo 24; Sb 7). O hino combina a figura
da Sabedoria que preside à criação, identificada a Cristo, com aquela outra
imagem paulina de Cristo, cabeça da Igreja, que é seu corpo. No pensamento
bíblico, todo o corpo participa da realidade de seu princípio vital (no caso, a
cabeça). No sacrifício e na glória de Cristo, assume-se todo o universo na
reconciliação com Deus. A “plenitude” (termo helenístico-gnóstico, indicando o
“uno”, ou seja, o ser perfeito) mora nele: a plenitude de Deus, englobando
todos os seus filhos.
Esse texto pode ser interpretado como elo entre as duas outras leituras, neste
sentido: o amor a Deus e a seu ensinamento (primeira leitura) encontra sua
plenitude na fé que se concentra em Cristo e sua palavra, proclamada no
evangelho. (Um texto que melhor combinaria com o tema da primeira leitura e do
evangelho seria, por exemplo, Tg 1,21-25, sobre ouvir e praticar a palavra.)
III.
PISTAS PARA REFLEXÃO
Amor ao próximo e solidariedade: Os profetas de Israel teceram os mais sublimes
elogios à Lei, ou melhor, ao ensinamento (torah) de Deus. Era um caminho de
vida. Mesmo assim, havia quem achasse a Lei complicada e procurasse um resumo
ou pelo menos um mandamento-chave que, por assim dizer, a resumisse. Essa
questão foi apresentada também a Jesus, e ele deu, sem hesitar, a resposta.
Menciona o mandamento que todo judeu recita diariamente na oração do “Shemá
Israel” (Dt 6,4-5) – “Amar a Deus com todas as forças” – e acrescenta: “e ao
próximo como a si mesmo” (como está em Lv 19,18.35). Esses dois mandamentos são
inseparáveis, pois o amor ao próximo é o dever número um de quem ama a Deus.
Paulo (Gl 5,13) e Tiago (Tg 2,8) resumem toda a moral cristã nesse único
mandamento. João nos diz ser impossível amar a Deus sem amar o irmão (1Jo
4,21). Não se pode amar o Pai sem amar os filhos. Mas o que é amar? E quem são
nossos próximos?
Os judeus consideravam como “próximos”, isto é, como candidatos à sua
solidariedade, os membros da comunidade judaica e os estrangeiros residentes
que viviam em seu meio (e cooperavam com eles): a esses era preciso “amá-los
como a si mesmo” (Lv 19,18.35). No caso dos inimigos, sobretudo dos
samaritanos, a esses não se devia amar, pelo contrário (cf. Mt 5,43). Ora,
exatamente um samaritano se torna solidário com um judeu jogado à beira da
estrada, depois que dois ilustres “próximos” judeus, um sacerdote e um levita,
deram uma volta para não se incomodarem com o compatriota assaltado…
Jesus não respondeu diretamente à pergunta do mestre da Lei: “Quem é o meu
próximo?”. Ele respondeu por meio de uma parábola, porque a questão não é
descobrir, teoricamente, quem é e quem não é próximo. A parábola insere o
ouvinte numa nova situação prática, existencial. Coração generoso se torna próximo
de qualquer um que precisa; a melhor maneira de ter amigos é ser amigo; a
melhor maneira de encontrar o próximo é tornar-se próximo, aproximar-se. A
questão não é teórica, mas prática. Ora, nós, na prática, esquecemos a parábola
de Jesus e fazemos como o sacerdote e o levita: afastamo-nos do necessitado –
mesmo se pertence à nossa comunidade! – e não “nos aproximamos” dele. Tornar-se
próximo é ser solidário. Será que somos solidários com os que vivem na margem
da estrada de nossa sociedade? Mesmo quando damos uma esmola a um coitado, não
é para nos desviarmos dele?
“Vai e faze a mesma coisa”, diz Jesus. Imitar o samaritano exige solidariedade,
assumir a vida do outro, não livrar-se dele. Torná-lo um irmão, pois esse é o
sentido verdadeiro da palavra “próximo”.
Como fica essa solidariedade nesse tempo em que a doutrina da competição, do
lucro e do proveito ilimitado solapou o tecido social, as relações de
gratuidade entre as pessoas?
Pe. Johan
Konings, sj
Nascido
na Bélgica, reside há muitos anos no Brasil, onde leciona desde 1972. É doutor
em Teologia e licenciado em Filosofia e em Filologia Bíblica pela Universidade
Católica de Leuven (Lovaina). Atualmente é professor de Exegese Bíblica na
Faje, em Belo Horizonte. Entre outras obras, publicou: Descobrir a Bíblia a
partir da liturgia; A Palavra se fez livro; Liturgia dominical: mistério de
Cristo e formação dos fiéis – anos A - B - C; Ser cristão; Evangelho segundo
João: amor e fidelidade; A Bíblia nas suas origens e hoje.
E-mail: konings@faculdadejesuita.edu.br
https://www.vidapastoral.com.br/roteiros/14-de-julho-15o-domingo-do-tempo-comum/
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