"VIVENDO E APRENDENDO COM A NATUREZA: LIÇÕES QUE O MAR
ENSINA"(Parte II)
Por Lindolivo Soares Moura(*)
Para quem nos acompanhou com a parte
I, propomos agora para reflexão a parte II, que leva o mesmo titulo. Almejamos
que o esforço para com a leitura possa trazer consigo algum fruto - senão
vários - como recompensa. Rubem Alves dizia que se nas entrelinhas de seu
discurso, o leitor de repente se deparasse com uma centelha que fosse, do
GRANDE MISTÉRIO, isso com certeza não seria mérito, mas graça. Gostaria de me
sentir por ele autorizado a fazer uso de suas mesmíssimas palavras.
6°
Lição: superando o preconceito e a discriminação: o
mar não faz triagem, muito menos distinção.
Thomas Fuller, religioso e historiador
britânico do século XVII, conhecido como "biblioteca ambulante", fez
uma afirmação curiosa sobre o mar:
"o mar - ele disse - não
recusa nenhum rio". O abraço desse acolhimento do mar para com cada rio
que nele busca morada, é quase sempre um abraço silencioso, sem testemunhas, e
sem nenhum tipo de seleção,
discriminação ou preconceito:
rios, córregos e riachos, o mar a todos acolhe do mesmo jeito. Que
diferença quando comparado ao que se passa conosco, seres humanos! Etnia,
religiosidade, gênero, cor, classe, nacionalidade, tudo, qualquer coisa, às
vezes um mínimo detalhe torna-se razão
suficiente para que o encontro e o acolhimento se transformem em desencontro e
afastamento. Duas crianças brincam juntas, nas águas do mesmo mar. Mas uma é
branca e a outra é preta: os pais se entreolham, desconfortáveis, desconfiados.
As crianças? - não estão "nem aí", não estão dando a mínima para o embaraço
dos pais ou de quem quer que seja. O preconceito não está no coração, está na
mente, e enquanto o coração não for pela mente contaminado, não haverá
preconceito, discriminação, e muito menos exclusão.
Você recusaria o sangue doado por uma
pessoa de cor ou etnia diferentes da sua, se esse sangue fosse o único capaz de
salvar sua vida ou a vida de alguém que você muito ama? Recusaria como mestre -
Jesus, por exemplo - alguém nessa mesma condição, se tal pessoa fosse a única
em condições de ensinar a você ou a algum dos seus, uma sagrada lição?
Recusaria a ajuda do forte, que diante do bárbaro ou da barbárie arrisca a
própria vida para salvar a sua ou a de algum ente querido seu, caso tal
defensor fosse de um outro credo ou religião, hetero ou homoafetivo, branco,
negro ou de qualquer outra cor ou pigmento? "Black is beautifull"
proclamam alto e a bom som os norte-americanos, "o preto é lindo": no
quadro, no carro, na sala ou na noite, em quase tudo, menos nos seres humanos.
No Brasil, por questões de ordem cultural, preferimos "niger" - negro
- ao invés de "Black" - preto - , mas o preconceito e a discriminação
não são diferentes. Como se a este ou àquele indivíduo fosse dado escolher a
cor que carrega sobre a pele. Lembra-se da canção? "Eu conheci um velho
índio, do Uruguai, que há muito, já foi onde a gente, não sabe se vai. Disse
que o mar, para na areia, e disse que a alma é mais branca naquele que a carne
é mais feia...". Carne, e não cor, note-se bem. O mar ensina, o mar
insiste: mas o preconceito e a dureza de
coração dificultam quase sempre o aprendizado da lição.
7°
Lição: aprendendo a controlar a ansiedade: o mar
pode ficar nervoso, mas jamais fica ansioso.
Viaja pela internet um pensamento
simples e ao mesmo tempo poderoso: "não é água com açúcar que acalma, é
água com sal" (desconhecido). Digo simples porque se assemelha a uma
receita caseira: o mar está, sempre esteve, e sempre estará aí ao alcance de
nossos olhos, a provocar nossa mente e mexer com nossas emoções. Poderoso,
porque a cura para a ansiedade jamais foi encontrada; pelo contrário, o
renomado Psiquiatra brasileiro Augusto Cury afirma em seu livro
"Ansiedade: a Síndrome do Pensamento Acelerado" que a ansiedade, e
não a depressão, será - e já vem sendo - a "doença" do século XXI.
Mas talvez o grande segredo revelado pelo mar em como domar e controlar a
ansiedade, não esteja na salinidade mas na "regularidade", e
sobretudo no fato de que é preciso viver e experienciar de forma plena e
intensa cada coisa a seu tempo. "Há um tempo para cada coisa debaixo do
céu", afirmam as Escrituras consideradas sagradas. Mas vivemos de acordo
com esse princípio? Não, não vivemos! Muito pelo contrário! Vivemos nos
atropelando uns aos outros, tropeçando em nós mesmos, em contínua pressa e
agitação. E assim nosso tempo, que raramente é suficiente para alguma coisa,
permanece "chronos" sem se transformar em "kairós", que é o
tempo propício e favorável a cada coisa e a cada singular situação. Não é
somente nossa comida que é "fast", "fast food", fast é
também a nossa vida. O "fast" - ou seja, a pressa - nos impede de
ver, contemplar, curtir e apreciar com calma e deleite, não só as belezas como
também as boas coisas que a vida nos proporciona.
Mas como sentir gosto ou sabor sabor
se nossos olhos estão fixos na tela de um computador - celular ou nootebook -
durante todo o tempo em que comemos!? Como admirar a paisagem divina e
estonteante lá fora, se nosso olhos estão grudados e fixos nesse mesmo aparato,
desde o início até o fim da viagem que fazemos!? Como orar com coração e
paixão, e não apenas com palavras vazias de emoção, se a tela de mensagens
permanece "on" o tempo todo,
dividindo e tornando literalmente opaca nossa atenção!? Isso sem contar o fato
de que, bem ao nosso lado, nosso filho manipula frenética e ansiosamente, olhos
feito "pisca pisca", seu próprio aparelho de distração. "Contato
imediato de terceiro grau" proporcionado por um aparato recebido como
"presente" - de grego, certamente - a fim de que tenha com o que
passar o tempo, e sobretudo não reivindicar atenção. E depois lá estamos nós no
Psiquiatra ou Psicólogo, buscando o
socorro que nos ajude a controlar a própria ansiedade, e dos pequenos a
agitação.
Aceleramos para depois desacelerar -
quando conseguimos, claro, - quase
sempre vivendo num amarelo contínuo, beirando o vermelho, isto é, o surto ou a
crise dessas duas espécies de monstros chamados ansiedade e agitação. Como
afinal controlá-las, ao invés de permitir que sejamos po elas controlados? A
solução caseira que o mar nos ensina é simples: viver intensamente, e por
inteiro, uma experiência de cada vez. Se a hora é para comer, coma, mas não
queira agradar dois senhores ao mesmo tempo: o estômago com a comida e a mente
com a informação; se a hora é para dirigir, apenas dirija, sem se envolver com
qualquer outra coisa que lhe roube a concentração; se está vendo um filme,
apenas curta - mesmo que seja um "longa" - sem que celulares, notes,
ou qualquer outra coisa, que sequestrem sua atenção; se o tempo é para sorrir,
sorria; se para chorar, chore; se para a alegria, alegre-se; se para o luto,
enluteça, mas nada de agir como um robot multitarefa que o impeça de agir com
paixão. Nada de fazer "por fazer": "tudo que fizer, faça-o com
paixão! Ou então não faça nada!", dizia
Lee Tereza, a Tereza de Caucutá. Faça tudo de forma atenta e intensa, ou
melhor ainda, não faça: "seja"! Seja inteiro, intenso, presente e
consciente. E se o agir segue o ser, como afirma a filosofia, tudo que você
fizer o fará de forma igualmente íntegra e intensa, sem ansiedade, pressa ou
excesso de agitação. Não confunda, claro, calma com inércia, mas não se esqueça
de que Maria escolheu a melhor parte - lembra-se? - e ela não lhe foi tirada Ansiedade não tem
cura, mas felizmente tem tratamento. O melhor remédio? Uma coisa de cada vez,
mantendo sempre o foco e sem perder a concentração.
8°
Lição: saber entrar e saber sair, sem provocar
invasão: o mar também se "ausenta" com a evaporação.
Muito hoje se fala do aprimoramento
das técnicas e dos instrumentos, no sentido de que os mesmos sejam o menos
invasivo possível. Nosso corpo, ensinam os entendidos, possui uma sabedoria
inata em repelir "corpos estranhos" de qualquer natureza, sejam eles
de carne e osso ou não. A chamada "nanotecnologia" tem avançado a
passos largos, por vezes desrespeitando um princípio tão simples quanto
fundamental: máquinas complexas são e serão sempre "mecanismos", e
como tais devem ser tratadas, isto é, como mecanismos que são. Seres humanos
são e serão sempre "organismos", e jamais devem ser tratados como mecanismos
ou de forma diferente do que são. Ora, se a invasividade para com o corpo
representa um perigo real e não apenas potencial, a ser tanto quanto possível
evitado, por que deveria ser diferente com a mente e com a vida das pessoas?
Também aqui o mar nos ensina uma preciosa lição: a de como saber entrar e saber
sair da vida de quem amamos, sem transgredir sua privacidade, invadir seu
espaço ou violar sua intimidade, como ele mesmo o faz através da evaporação. "Intencionalidade"?
Não, claro, mas certamente uma estratégia inata de resolução. Afinal,
posteriormente suas águas retornarão através das chuvas, por vezes torrenciais,
muito mais puras, límpidas e cristalinas.Também a natureza tem lá suasl
ferramentas e alternativas de autopreservação.
Como aplicar em nossa vida, sobretudo
no exercício das funções de pais, avós e educadores, essa preciosa lição?
Resposta difícil mas que requer ser digerida: entrando, saindo, e quando
necessário literalmente "desaparecendo" da vida daqueles que amamos e
que nos foram ou são confiados. A hora e a forma certas? Em se tratando de
jovens, e sobretudo adolescentes, nosso saudoso e inesquecível Rubem Alves
oferece não mais que duas sugestões. A primeira: "não faça nada. Não tente
fazer nada.Tudo que você fizer estará sempre errado. Não se meta. Não diga
nada. Não dê conselhos". A segunda: "fique por perto para juntar os
cacos...O adolescente é uma entidade que escapuliu do seu controle". Você
riu, sorriu, ou simplesmente se confundiu com tais "conselhos"? Não
se desanime, no meu caso foram as três coisas a um só tempo. Uma crônica do
mesmo Rubem Alves certamente no ajuda a sair do possível espanto, provocado
pela contundência de tais sugestões. Nela o escritor e poeta se refere a três
tipos de diferentes ninhos: o "ninho-colo" da infância (e da velhice,
acrescentaremos nós), o "ninho-asa" da adolescência (por nossa conta, também da juventude), e o
"ninho-casa" - "casa própria', no presente caso - da adultez. Os
diversos tipos de ninho são auto-explicativos, e dispensam comentários. O
mesmo, parece-nos, pode ser dito das diferentes fases a cada um deles
correlacionadas.
Resta portanto concluir: a infância e
a velhice, guardadas suas diferenças e nuances, são as fases em que mais sonos
convocados a entrar e nos fazer presentes na vida de nossos filhos, netos,
idosos e educandos. A adultez é a fase em que somos convidados muito mais a
sair do que a entrar na vida dos mesmos. E para quem julga ter visto de entrada
longo na casa e na vida dos filhos e netos -
sobretudo quando os mesmos já constituíram sua própria família - é
sempre bom, ao menos por precaução, ter sempre à mão ou ao menos como
"carta na manga" um visto de
saída; afinal, é melhor sair confortavelmente pela mesma porta que se entra, do
que ter que sair enxotado pela porta dos fundos. E finalmente a adolescência,
fase em que, tanto do ponto de vista literal como metafórico somos convidados a
"desaparecer", sair de cena, reduzindo ao máximo nossa
"invasividade" e nossa invasão de privacidade. Tudo isso, claro, sem
deixarmos de permanecer por perto, discreta e sutilmente, para se for o caso
ajudarmos a "catar os cacos", como sugere Rubem Alves. Observe-se que
em certos casos o erro nessa estratégia de "co-participação", como
gostam de chamá- la certos planos de saúde, pode ser não apenas prejudicial mas
literalmente catastrófica. Assim como o mar, é preciso que também nós tenhamos
sabedoria para discernir a hora e a melhor forma de fazê-lo, sobretudo em se
tratando do sumir e do "desaparecer", situações e fases em que a
liberdade, a autonomia e o crescimento daqueles que amamos devem falar mais
alto. Persiste a dúvida em relação ao "quanto"? Não há regra e muito
menos receita, mas sugerimos um princípio: "é tão bom desaparecer vez por
outra, quanto surgir de vez em quando".
9°
Lição: a vida foi feita para a alegria: aprendendo
a curtir ao máximo, o mar nosso de cada dia.
O cantor e compositor brasileiro Tony
Clarindo, numa de suas composições intitulada "Mar da Alegria", assim
canta em poesia: "eu vi um mar no sertão, que inunda e contagia, é que o
mar não é só água, é festa que leva a mágoa, eu vi o mar de alegria".
Poucas coisas são tão contagiantes quanto um final de semana ensolarado e
escaldante, e uma praia apinhada de pessoas disputando cada palmo de areia: bonito
de se ver, difícil não se contagiar. A todos, sem distinção, num gesto de pura
gratuidade, o mar acolhe e convida a usufruir de suas areias, suas águas, suas
ondas e suas alternativas plurais. São pessoas nadando, surfando, esquiando, se
divertindo e brincando, gente que não acaba mais. Disse-o bem o poeta: "o
mar não é só água, é festa que leva a mágoa, é um mar de alegria".
Ensinava Rubem Alves que, se há uma
lição maior que as crianças nos ensinam, é que a vida foi feita para o gozo e a
alegria, e não apenas para trabalho, rotina e monotonia. As crianças - ele
dizia - vivem num outro diapasão, num tempo que é só delas, que pouco ou quase
nada tem a ver com o tempo dos adultos, cuja principal característica é
justamente "não ter tempo", tal o número de tarefas, atividades e
negócios em que estão envolvidos e comprometidos. "Nec otium" - é a
origem latina para "negócio", em português. "Otium"
significa descanso, ócio, lazer, enquanto "nec", advérbio de negação,
significa nada, nenhum. Literal e etimologicamente, portanto, "negócio" significa
nenhum descanso, nenhum ócio, nada de prazer ou lazer. Sabedor disso Rubem Alves não se cansava de repetir:
"criança é um fim em si mesmo, e não um meio para se chegar ao adulto. A
vida foi feita para o prazer e a alegria". Precisou de certa forma
"voltar a ser criança", para captar a essência desse autêntico
mandamento, e ensinava que tal lição não não se aprende nas escolas: as
crianças e os idosos, que voltam em sua velhice a ser como elas, são para Rubem
os verdadeiros mestres desse ensinamento. "Professores são pesados,
afundam, palhaços - assim como as
crianças - são leves, flutuam", gostava de repetir. Professor por durante
boa parte de sua vida, sabia bem o que dizia.
Data vênia, querido Rubem Alves, para
dizer que não são apenas os professores que são pesados, nós os adultos também
o somos. Muitos, senão a maioria, crescem e envelhecem perdendo o brilho do
olhar, os sonhos e a fantasia, e depois tentam recuperar o tempo perdido
correndo atrás de um trem chamado "trem da alegria". "Não
paramos de brincar porque ficamos velhos - ensinava Oliver Homens - ficamos
velhos porque paramos de brincar". Na velhice, reencontramos a criança que
fomos um dia: "para isso caminhamos a vida inteira - ainda Rubem Alves - :
para chegar enfim ao coisas lugar de onde partimos...". Metade de nossas
rugas são marcas da idade e da saudade por si mesmas, claro, mas a outra metade
denuncia presença de rigor, excesso de rigidez e ausência de farra, folia,
diversão e alegria. "Os velhos nos dão bons conselhos porque não nos podem
mais dar maus exemplos", ironizava Dostoievsk. Mas para que a chama do
prazer e da alegria possa permanecer acesa, como uma planta ela precisa receber
cuidados, ser cultivada e regada a cada
novo e corrente dia. Mas é justamente aí que as coisas se complicam: é
essa nossa prioridade? Temos tempo para isso? Não, não temos! "Nec
otium", lembra-se?
Em um de seus mais belos poemas,
intitulado "Não tenho tempo", Neimar de Barros retrata o lamento um
tanto tardio de um pai: "sabe, meu filho, até hoje não tive tempo para
brincar com você. Arranjei tempo para tudo, menos para poder ver você crescer.
Nunca joguei dominó, dama, xadrez, ou batalha naval com você. Percebo que você
me rodeia, mas sabe, eu sou muito importante, e não tenho tempo para
você...", e assim segue o poema, e assim segue a vida. "Vida que
segue", como dizem alguns, "deixa a vida me levar, vida leva eu,
deixa a vida me levar, vida leva eu...", Como reza a canção. "Uma
vida não refletida - dizia o filósofo grego Sócrates - não vale a pena ser
vivida". Ao que Lou Marinoff, Aconselhador Filosófico contemporâneo
acrescenta: "a filosofia está sempre disposta a mudar nossa vida, desde
que, se preciso for, estejamos dispostos a mudar nossa filosofia".
Trabalhar e se envolver com os negócios é bom; bom e necessário, é preciso
admitir. Mas o lazer, o prazer e a alegria são melhores, muito melhores, faz-se
mister reconhecer. "Tempus fugit, carpe diem": o tempo é breve, a
vida é curta: é preciso saber aproveitar cada um de nossos dias!
10°
Lição: o perigo de se fazer da vida um mar de lama:
"praia interditada!"
"Mar de lama" foi a
expressão utilizada pelos opositores de Getúlio Vargas para caracterizar o
"mar de corrupção" em que teria se transformado a segunda gestão de
seu governo. Atribui-se ao próprio Getúlio a criação da expressão, usada para
se referir a uma série de transações ilícitas, realizadas por ninguém menos que
o chefe de sua guarda pessoal. Entrar nesse tipo de mundo é muito fácil,
difícil mesmo é sair dele. Você chega de "mala e cuia" para curtir
com amigos ou familiares um daqueles feriados ensolarados e escaldantes, e de
repente são surpreendidos com o aviso da placa indicativa: "Atenção: praia
imprópria e interditada para o banho". Ignorando o fato de que naquele dia
"o mar não está para peixe", e desrespeitando tanto a advertência do
aviso como o próprio mar, você "arma a barraca" e seja lá o que Deus
quiser! Deus talvez não queira, mas é provável que o pior recebeu autorização e
passagem para acontecer: contágio, contaminação, doença, e sabe-se lá Deus o
que mais. Alguns dias depois, no hospital, senão numa sala de cirurgia, pela
vidraça você vê um de seus filhos ou filhas sofrendo, ainda que a sorrir-lhe.
Em silêncio, do fundo de sua alma, você pede e reza a Deus que lhe perdoe a
imprudência cometida, e roga que as farpas de dor e sofrimento, que ora são
direcionadas para seu filho, sejam cravadas não no dele, mas em seu próprio
peito. Se Deus, a natureza ou a vida, ouvirão ou não a sua súplica, esse é um
final incerto. Não funciona como a previsão do tempo, que você ouve quase todos
os dias. "E pensar que tudo começou com um simples banho de mar - você diz
de si para si mesmo -: o que foi que eu fiz!?".
No mar da vida não costuma ser
diferente: tudo pode ter início com pouca coisa, quase nada, e de repente
podemos nos ver envolvidos num mar de lama, suborno e corrupção. Retirar Deus
da história pode parecer um bom mecanismo de defesa: aparentemente torna as
coisas mais fáceis, o sono mais tranquilo e a consciência menos pesada.
Acontece que Deus pode ser retirado da sua, da minha, da nossa história, mas a
morte não. Mais cedo ou mais tarde, querendo ou não, você terá que defrontar-se
com ela. E será ela - Deus, talvez - que dialogará com você, numa espécie de
"alfândega" pela qual você deverá passar, antes de partir ou dar
entrada em outra vida. Imaginou como deverá ser esse diálogo?
Sua morte: "e aí, tudo bem? Como
é que vai essa força!? Algo a declarar? Levando consigo algo que deveríamos
saber? De repente algum valor acima da cota permitida, algum bem não tão bem
adquirido, algo do qual tenha posse mas não propriedade, certo montante não
contabilizado, algum lucro ou mais valia um tanto exorbitantes, algo não tão
justo para um ser pensante; enfim: algo que
queira declarar espontaneamente, antes que sua bagagem seja conferida? Isso
poderá facilitar as coisas para você, caso, claro, não tenha conduzido sua vida tão bem quanto deveria.
Chamamos a isso de 'autodelação premiada'. E com certeza você não estará sendo
dos primeiros a fazer uso dela. Tem algum interesse? E então, o que me
diz!?".
E você: "vocês conhecem por aqui
a expressão 'mar de lama'"?
Sua morte: "lama do mar, sim,
'mar de lama', não. Pode explicar melhor do que se trata, Senhor?".
Você: "deixa pra lá, levaria
tempo e provavelmente você não entenderia. Mas o certo é que minha vida - a que
agora estou deixando para trás - eu a vivi sem eira e nem beira, um verdadeiro
'mar de lama'".
De novo sua morte: "Não sei bem a
que, você está se referindo. Mas melhor para você: contrariamente ao que
costumam dizer 'lá embaixo', cada um pode sim, trazer aqui para cima, tudo que
conseguiu acumular ainda em vida. Suas malas serão todas elas esvaziadas, uma a
uma, e recarregadas com esse tal de 'mar de lama' a que você se referiu. Por
aqui também não há prêmio ou castigo, como costumam pensar lá embaixo: cada um
recebe exatamente 'o que' e 'o quanto' conseguiu acumular; nem mais e nem
menos. Algo mais em que eu possa ajudar?".
E você: "posso ao menos dar uma
última descida lá embaixo, para uma conversa rápida com meus filhos, familiares
e amigos, e quem sabe uma última despedida?".
"Receio que não - responde por
fim sua morte - seu trem já está de partida. Boa viagem, Senhor! E tudo de bom
na outra vida! Ah! E por favor: não esqueça sua bagagem!".
L.S.M.
(*)Possui graduação em teologia
pelo Instituto teológico pio XI (1983), graduação em Psicologia pela
Universidade Federal do Espírito Santo (1997), graduação em Filosofia pela
Faculdade Salesiana de Filosofia, ciências e letras (1986) e mestrado em
Filosofia pela Pontificia Universidade Gregoriana ,Roma - Itália(1988) . Foi
por 11 anos consecutivos professor de filosofia jurídica e psicologia Jurídica
do Centro Universitário de Vila Velha, ES.Durante esses 11 anos foi Coordenador
Pedagógico por 05 anos e de Ensino por 1 ano e meio do mesmo Curso de Direito.
Atualmente é terapeuta de grupo, individual, vocacional, Consultório Clínico
Psicológico particular. Formou-se recentemente em Psicodrama (02 anos) pelo
Instituto Pegasus de Vitória, ES. Atualmente, cursa a pós graduação TCC -
Terapia Cognitivo Comportamental.
https://www.escavador.com/sobre/3708588/lindolivo-soares-moura
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