FÉ E POLÍTICA SE ABRAÇARÃO (II)
Por Prof.
Dr. Fernando Altemeyer Júnior
III. Fé e Política se abraçarão
Vários
movimentos e instituições no Brasil assumem o abraço fecundo da fé e da
política.
O
Movimento de Defesa dos Direitos Humanos, e entre eles o Centro de Defesa de
Campo Limpo na cidade de São Paulo, que chegou agora aos 25 anos de existência,
geraram pessoas novas e novos relacionamentos. Ocorreram novidades e
sofrimentos. Nos Centros de defesa, as pessoas, situações, lugares e momentos
fortes valorizam momentos especiais do cotidiano. Este o momento da fé.
Para que
isto aconteça harmoniosamente é preciso que cada um de nós saia desta roda
infernal do ativismo. Que com frequência religiosa, cada servidor do povo,
encontre as pessoas (através de visitas gratuitas e não para marcar novas
reuniões!), repense as situações que viveu e vive, amplie horizontes dos
lugares que ocupa e transita, e, viva com alegria e coragem os momentos fortes
que lhe são reservados, e para os quais, às vezes, nem preparados estamos. E
compreenda que nem todos viveram o que você viveu, que é fundamental partilhar
com paciência e ternura. Não crescer sozinho, mas com os outros e como as
árvores.
A palavra
sobre a fé política, neste século XXI, não virá de soberanos e superiores
argumentos de autoridade, mas da sapiencial e profunda experiência do próprio
serviço em favor da vida. Deste diálogo fecundo entre a fé e a política.
Esta
difícil aventura da busca da justiça e da verdade indicará alguns princípios
concretos para a ação de nossos irmãos e sujeitos de transformação.
Este
renovado esforço de libertação, efetuado no cotidiano da humanidade sofredora,
redescobrira pela força da liberdade, novos segredos do viver. Graças a esta
sua contribuição humilde e, propositalmente não arrogante, os movimentos
sociais e pastorais podem, ao lado de outras mulheres e homens, felizes e
renovados, na fidelidade ao povo, recriar solidariamente a história e seu
sentido. Perder tempo e sono pelos outros.
Podemos recriar, enfim, gente nova, um Brasil
fundado e vivido na ética e na verdade, e cada dia gerarmos vida nova, plena de
direitos, e germinalmente cidadã, como nos dizia os antigos: “Incipit vita
nova”.
Será,
sobretudo, necessário termos em conta os novos fenômenos produzidos pelo
neoliberalismo, como bem nos mostra a análise de Leonardo Boff:
“No neoliberalismo, por causa
da modernização e da competitividade, está presente uma lógica da exclusão. Os
países do Sul, tecnologicamente atrasados, sem suficiente competitividade, com
crises políticas internas devido à pobreza e à miséria, não são mais
interessantes. Por isso, há neles pouquíssimos investimentos estrangeiros. Nós
não valemos, porque estamos fora do mercado. Quem está fora, não existe”
(Leonardo BOFF, “O Cristianismo e a nova ordem mundial”, in: Jornal O
Estado de S. Paulo, São Paulo, 15/8/1993, p. 3).
Entrementes, o próprio Boff, apresenta uma
esperança concreta e palpável:
“Acreditamos nas revoluções moleculares. Como as
moléculas, a menor porção de matéria viva, garantem a sua vida pela relação e
articulação com outras moléculas e com o meio ambiente, as revoluções devem
começar nos grupos e comunidades interessadas em transformações. Nos grupos
transformam-se as pessoas, suas praticas e suas relações com a sociedade
circundante. E a partir daí, podemos começar a inundar espaços mais amplos da
sociedade” (Leonardo Boff, “O Cristianismo e a nova ordem mundial”, in:
Jornal O Estado de S. Paulo, São Paulo, 15/8/1993, p. 4).
Mas, os
desafios para realizar qualquer revolução molecular, são enormes, pois, como o
afirma Michel Henry:
“Quando, portanto, o trabalho
se encontra progressivamente excluído de uma dada sociedade, como é o caso da
nossa, não é somente a forma desta sociedade que é subvertida, mas a própria
existência do homem. Como e por que se produz esta exclusão progressiva do
trabalho? É o que aparece atualmente evidente: é a substituição da atividade
humana por um dispositivo instrumental objetivo cada vez mais complexo, que
reduz sem cessar a parte do trabalho vivo, no seio do processo de produção de
bens úteis à vida” (Michel Henry, “Réinventer la culture”, in: Le
Monde des Débats — nº 11, Paris, set., 1993, pp. 3-4).
O filósofo francês insiste:
“Necessitamos hoje uma nova
cultura para um mundo novo. Por que não? Mas, uma cultura não se fabrica, não
se constrói como um computador. Ela vem de longe, ela esta lá desde sempre,
incluída na vida como o logos que ela porta em si desde o
princípio, como a vontade de viver, de se revelar e de realizar a si mesma –
como esta atividade primordial de autotransformação e de autocrescimento, que
não é senão um com ela e que se denomina “trabalho”. Mas, quando a essência da
vida é excluída e seu poder é usurpado pelo reino cego do que nada sente, nem a
si mesmo, é a cultura que desaparece. E a tarefa não é nada fácil atualmente se
se trata da humanidade doar-se novamente uma cultura, num mundo onde o
princípio consiste em sua eliminação” (Michel Henry, “Réinventer la
culture”, in: Le Monde des Débats — nº 11, Paris, set.,
1993, p. 4).
IV. OS PRINCÍPIOS NORTEADORES
Algumas
marcas profundamente inovadoras, nesta nossa busca de concretizar as revoluções
moleculares e estar atentos à reinvenção da cultura, na luta pela liberdade dos
excluídos, no serviço à vida, inspiram-se no cumprimento de alguns princípios
de base:
“1.
estímulo à organização do povo;
2. lutar
para garantir a plena vigência dos direitos humanos;
3.
incentivar e garantir a autonomia dos movimentos sociais;
4. ter
claro o seu papel, suas limitações e potencialidades, e enfim;
5.
combater toda forma de discriminação.”
Alguns
sinais históricos comprovam o cumprimento destes princípios:
a)
Multiplicação de ONGs na base popular espalhadas pelos quatro cantos do país e
de grupos de reflexão, particularmente no mundo rural e nas periferias urbanas.
b)
Releitura da vida e da sociedade brasileira com novos óculos, vendo em cada
pessoa humana, de maneira popular e comprometida, um companheiro e irmão de
vida e de utopias, tomando em nossas mãos, lutas fundamentais, como os Projetos
Populares, a democracia direta, a batalha pela Reforma Agrária, a defesa das
Crianças e Adolescentes, da imprescindível vida dos indígenas.
A ação
política dos cristãos foi oferecendo aos jovens e ao povo, o saboroso caldo de
uma nova e velha cultura, forjada fora dos padrões e controle da mídia
televisiva, e muitíssimo mais suculenta, pois fruto da própria beleza e desta
esperança persistente, deste nosso povo que é negro, índio e migrante.
c)
O engajamento diante dos clamores populares, sobretudo nas graves e permanentes
questões da moradia, da saúde e do desemprego, através de gestos concretos de
misericórdia e compaixão com as dores reais das pessoas, foram sendo assumidos
pelos companheiros e, articuladamente pelo movimento social, através da criação
de tantos Programas de Formação (metodologia da práxis), de comunicação, e, do
programa de enfrentamento da violência em prol da cidadania ativa.
“A ação como disciplina da compaixão requer a
disposição em responder às concretas necessidades do momento” (Donald
McNeil, Compassion — A reflection on the Christian Life, Image
Books-Doubleday, Nova York, 1982, p. 118).
Quero
citar quatro vidas exemplares, que falam por si deste engajamento entre fé e
política: uma religiosa chamada Ir. Dalva Ivete de Jesus, que trabalha há anos
na pastoral do povo das ruas de São Paulo, na região central; um padre, que
oferece seu carinho e amor aos jovens e crianças, conhecido como Vigário do
Povo da rua, Padre Júlio Renato Lancellotti; e, em nível institucional mais
amplo, os doutores Hélio Pereira Bicudo e Dalmo de Abreu Dallari, sempre
presentes na defesa internacional dos direitos dos pobres. Exemplos que
interpelam pela perseverança, transparência, e porque possuem a força de quem
vive com honra a fé no Cristo Jesus.
d) A
vivência e a proclamação de uma ética existencial, pessoal e comunitária,
traduzida em atitudes de respeito ao pluralismo, e revestida das profundas
convicções do valor da vida humana, pelo anúncio corajoso da vida humana e
ecológica, apesar de toda a lavagem cerebral conduzida por tantas ideologias da
elite e, difundidas por programas radiofônicos, que se espalharam pelo Brasil.
O
movimento social dos cristãos comprometidos nas CEBs e nas pastorais sociais,
felizmente, bebe de outras fontes. Ele se alimenta da força do pequeno que
acredita “que o mundo será melhor quando o menor que padece acreditar no menor”
e das pessoas de boa vontade dispostas a salvar a vida de quem a tem por um
fio. Somos daqueles que acreditam que os pobres nos julgarão.
“A existência de milhões de empobrecidos é a
negação radical da ordem democrática. A situação em que vivem os pobres é
critério para medir a bondade, a justiça e a moralidade, enfim, a efetivação da
ordem democrática. Os pobres são os juízes da vida democrática de um país”
(CNBB, Exigências Éticas da Ordem Democrática, Paulinas, São
Paulo, nº 72).
Assim, a
cada dia novos desafios estão nos sendo lançados. Recentemente com o
crescimento da miséria e o aumento de Igrejas pentecostais da vertente da
prosperidade individual houve uma revalorização de questões esquecidas e
hiper-valorização de certos temas.
Precisamos
com urgência conversar e trabalhar a questão do corpo e das práticas e
discursos destas Igrejas e, confrontar com nossas próprias respostas.
Será
preciso rever nosso vocabulário sem perder nossa utopia e ética comunitária.
“Não está na pauta dos cultos dessas igrejas o
papel de ‘salvar as almas’, mas de libertar o corpo. Entende que é necessário
libertar o homem dos males que estão alojados no seu corpo. Não que o corpo
seja ruim, mas algo que está nele. Com esta preocupação, leva-os para um outro
ponto. O seu culto é um lugar onde o corpo está presente, com seu cansaço ou
com sua alegria” (José Rubens L. Jardilino, Sindicato dos Mágicos,
CEPE, São Paulo, 1993, p. 32).
Devemos a
cada dia aprender a ser gente, mais gente, e profundamente humanos. Tarefa
óbvia, à primeira vista, mas que custará toda a nossa existência para
realizar-se. E qualquer pequeno passo é fundamental, pois cada descoberta
pessoal e coletiva já é um passo na afirmação do humano renovado.
“O capitalismo criou uma cultura do eu sem o
nós. O socialismo criou uma cultura do nós sem o eu. Agora precisamos da
síntese que permita a convivência do eu com o nós. Nem individualismo nem
coletivismo, mas democracia social e participativa” (Leonardo Boff, “O
Cristianismo e a nova ordem mundial”, in: Jornal O Estado de S. Paulo, São
Paulo, 15/8/1993, p. 3).
Esta
nossa tarefa incessante, pessoal e estrutural, alimenta-se e enraíza-se nas
outras pessoas que conosco caminham, particularmente naqueles que a sociedade
mais despreza e calunia, muitas vezes, no desejo hipócrita, de torná-las bodes
expiatórios. Entre nós, cidadãos conscientes e a humanidade empobrecida existem
laços indestrutíveis e invioláveis, semelhante aos que unem as pessoas
religiosas a Deus.
Não
somos, nem queremos ser salvadores da pátria, mas nos sentimos tocados e
feridos, quando qualquer pequenino é ferido ou tem seu direito vilipendiado. É
como se fôssemos todos artérias fundamentais de um mesmo sistema sanguíneo.
Interligados e complementares. Interdependentes.
V. O FUTURO DE UMA FÉ LIVRE E COMPASSIVA
A palavra
de esperança culmina em festa e na ceia do Cristo, onde o próprio povo oferece
como alimento sua vida e seus sonhos, e nesta sua louvação afirma a própria
vida e sua luta de resistência. E descobre o sentido da vida na ressurreição de
Jesus de Nazaré.
Cremos na
festa da vida e do viver, fazendo com mãos, mentes e corações que o humano
mergulhe na alegria infinita. Verdadeira explosão de potencialidades. Este
mergulho na festa dos pobres é vivido nas Igrejas inseridas nas classes
populares, ao defenderem a vida e experimentarem os segredos e mistérios desta
fé mística. E é vivido também por todo aquele que sabe partilhar e amar. Pois
quem ama, conhece o sabor da festa e da alegria.
Creio que
nenhum companheiro ou companheira pode abdicar desta necessidade imperiosa de
celebrar com os pobres suas festas e suas alegrias, do jeito do povo e com suas
melodias. Entrando pela porta da cozinha, brindando aos companheiros e até para
os santos! Crendo em horizontes escatológicos.
“A dinâmica da existência histórica é de
essência escatológica. Mas, se é assim, é porque pertence à essência do ser
humano determinar-se teleologicamente” (Jean Ladriere, Vie sociale
et destinée, J. Duculot, Gembloux, 1973, p. 135).
À guisa
de conclusão, diremos que sem esta viva e necessária compaixão, inspirada na
comunhão, os pobres retornariam à submissão. Mas a compaixão, sem esta pratica
libertadora, tornaria o militante cristão uma pessoa estéril e burocratizada,
como algumas associações e grupos já cooptados, e, completamente dependentes do
poder ou do dinheiro de projetos estatais ou de agências do exterior.
Na defesa da vida dos pobres, busca superar
rivalidades secundárias diante de outros atores históricos, forjando redes e,
vibrando interiormente com a causa dos pequenos, especialmente das mulheres,
dos negros, dos índios e das crianças. Redes de movimentos sociais articuladas
organicamente. Assim cumpriremos a profecia de MEDELLÍN: “A justiça e, por
conseguinte, a paz conquista-se por uma ação dinâmica de conscientização e organização
dos setores populares, capaz de urgir os poderes públicos, muitas vezes
impotentes em seus projetos sociais, sem o apoio popular” (CELAM, Conclusões
de Medellín: A Igreja na atual transformação da América Latina à luz do
Concílio, capítulo 2, n. 18, Vozes, Petrópolis, 1985, p. 62).
E
ficaremos surpresos diante do ser humano:
“Que quimera, portanto, é o
homem? Que novidade, que monstro, que caos, que sujeito de contradição, que
prodígio! Juiz diante de todas as coisas, imbecil verme da terra; depositário
do verdadeiro, cloaca de incertezas e de erros; glória e refugo do universo”
(Blaise Pascal, Pensées, GF-Flamarion, Paris, 1976, p. 173).
Se o mistério do humano, sempre
presente em nossa reflexão, exige uma atitude de escuta e de silêncio contemplativo,
esta atitude deverá também nos permitir viver a dinâmica entre clareza e
penumbra. Assim canta o poeta catalão: “O amor é como um mar alvoroçado de
ventos e ondas, sem porto nem margem. Morre o amigo no mar; e no perigo morrem
também seus tormentos e nasce sua realização” (Raimundo Lulio, Livro do
Amigo e do Amado, Loyola, São Paulo, 1989, p. 103).
A
modéstia será nossa mais importante qualidade. Necessitamos, no Brasil de
agora, como nunca, de abundante vida, de contagiante beleza e emocionante compaixão.
Esta sede
de infinito vivida pelas pessoas que têm fé no humano é nosso tesouro, como nos
indica Dostoievsky:
“Toda a lei da existência
humana consiste em poder sempre se inclinar diante do infinitamente grande.
Tire dos homens, a grandeza infinita e, eles cessarão de viver e morrerão no
desespero. O imenso, o infinito é tão necessário ao homem, quanto o pequeno
planeta sobre o qual ele habita” (Theodor Mihailovic Dostoievsky, Les
possédés, T. II, trad. do russo por Victor Derély, Librairie Plon, Paris,
1886, p. 347).
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