SANTO AGOSTINHO E A POLÍTICA
Na visão do pastor
hiponense, a atividade política é algo fundamental para que haja na sociedade a
tranqüilidade e a ordem. Através do exercício correto do poder, os governantes
poderão prestar a todos um excelente serviço voltado para o bem comum. Contudo,
a função política para Santo Agostinho não deve se limitar a resolver apenas
problemas de cunho material. Como o ser humano é um todo, ela deve se esforçar
para proporcionar aos cidadãos da pátria terrena condições para a prática do
culto ao Deus verdadeiro. Do contrário nunca atingirá com autenticidade a
concórdia social. Onde Deus não está presente a paz temporal torna-se
impossível. Veremos também que a ética agostiniana se fundamenta no amor de
Deus. Ela encontra sua verdadeira razão de ser, na prática do preceito
evangélico “Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo”.
1 O Conceito Agostiniano de Política
1.1 O Fundamento da
Política Agostiniana Como mencionei no capítulo anterior, a Cidade de Deus não
é um tratado especificamente voltado para a função da política. Contudo, nela o
santo doutor de Hipona lança algumas luzes sobre a origem e a finalidade da
política no seio da sociedade humana. O pensamento político de Santo Agostinho
foi forjado num tempo de crises tendo como referência duas tradições: a da cultura
greco-romana e das Escrituras Judaico-Cristãs.
1 Como se sabe
Agostinho bebeu nas fontes de Platão de onde certamente contemplou, depois
tirou a imagem de uma Cidade Ideal. Mas Santo Agostinho era profundo conhecedor
e admirador da história da Urbs como ele demonstra nos livros III e V da Cidade
de Deus, quando relata com uma minúcia impressionante a fundação, a sucessão
dos regimes, as crises internas, as guerras, os adversários e os heróis da Roma
Antiga.
O pensamento
Agostiniano acerca da política está permeado e fundamentado na transcendência
do ser humano. Ele se articula com a Teologia sobre a qual deposita suas
esperanças, pois a política, como função especificada da Cidade Terrestre, é
importante enquanto atividade que promove a pax romana temporalis e ao mesmo
tempo prepara ou remete para a Cidade Celeste.
2 O exercício do
poder político em Agostinho, embora tenha um valor relativo, como aliás todo
mundo criado, desempenha um papel importante na sociedade terrestre como meio
que garante o bem comum e a segurança dos cidadãos da Civitas Terrestre. Estes
cidadãos devem trabalhar para viver numa tranquillitas ordinis.
3 Evidentemente que
esta tranqüilidade da ordem à qual se refere Santo Agostinho na De Civitate Dei
só será uma realidade quando o exercício da função política for fundado no
verdadeiro Amor na Caritas, como denomina o próprio Santo Agostinho. Sendo,
porém, uma instituição exercida por homens marcados pelo pecado, a política
para ser vivida com autenticidade e justiça, necessita da graça de Cristo.
Santo Agostinho enfatiza que só haverá convivência justa nas organizações
sociais quando Cristo for o alicerce e o centro, inspirando e ao mesmo tempo
dirigindo as ações humanas.
4 Santo Agostinho em
nenhum momento deixa de lembrar a soberania que Deus tem sobre o mundo e o
homem. Quando este último reconhece e passa viver sob o Senhorio do seu
Criador, as iniciativas humanas, dentre estas a política, atingirão seu fim
nesta Cidade Terrestre e contribuirão para a felicidade dos cidadãos aqui e
agora, preparando-os para a felicidade completa na Cidade Celeste. Para Santo
Agostinho, a política constitui uma atividade fundamental para que no seio da
sociedade humana haja o bem e a paz. A função política só será corretamente
vivenciada se for pautada pelo interesse dos governantes em servir e prestar
culto ao verdadeiro Deus: “Se, por conseguinte, se rende culto ao Deus
verdadeiro, servindo com sacrifícios sinceros e bons costumes, é útil que os
bons reinem por muito tempo e onde quer que seja. E não o é tanto para os
governados como para os governantes. Quanto a eles, a piedade e a bondade,
grandes dons de Deus, lhes bastam para felicidade verdadeira, que, se merecida,
permite à gente viver bem nesta vida e conseguir depois a vida eterna.”5
5 Sem esta preocupação, é impossível que se
concretize o bem comum, pois os objetivos particulares dos dirigentes políticos
prevalecem sempre sobre os interesses da coletividade, ocasionando as
injustiças sociais, violência, as revoltas populares etc. A esse respeito
convém citar as próprias palavras do santo hiponense: “Desterrada a justiça,
que é todo reino, senão grande pirataria? E a pirataria que é, senão pequeno
reino? Também é punhado de homens, rege-se pelo poderio de príncipe, liga-se
por meio de pacto de sociedade... Se esse mal cresce, porque se lhe acrescentam
homens perdidos, que se assenhoreiam de lugares, estabelecem esconderijos,
ocupam cidades, subjugam povos, toma o nome mais autêntico de reino. Esse nome
dá-lhe abertamente, não a perdida cobiça, mas a impunidade acrescentada.”
6 O santo pastor de
Hipona reconhece que o exercício do poder temporal só encontrará sua verdadeira
realização quando governantes e súditos se deixarem conduzir pela Bondade
Divina. Para ele esse é o caminho para se tornarem participantes e irradiadores
da Bondade de Deus, procurando a paz temporal ou felicidade temporal vivendo em
comunhão com o Bem Supremo que é Deus. Somente nestes habitará a Verdadeira
Felicidade.
.1.2 A Finalidade da Política
Parece oportuno
mencionar e citar as palavras que o Santo bispo de Hipona dirigiu ao governador
da Calama, Nectário. Elas resumem tudo quanto Santo Agostinho diz sobre a arte
de governar a Cidade Terrestre: Também serviços prestados à pátria terrena, se
fizeres com amor vero e religioso ganharás a pátria celeste [...] deste modo,
proverás, de verdade, ao bem de teus concidadãos a fim de fazê-los usufruir não
da falsidade dos prazeres temporais, nem da funestíssima impunidade da culpa,
mas da graça da felicidade eterna. Suprimam-se todos os ídolos e todas as
loucuras, convertam-se as pessoas ao culto do verdadeiro Deus e a pios e castos
costumes, e então verás a tua pátria florir não segundo a falsa opinião dos
estultos, mas segundo a verdade professada pelos sábios, quando esta pátria, em
que nasceste para a vida mortal, será uma porção daquela pátria para a qual se
nasce não com o corpo, mas pela fé, onde [...], após o inverno cheio de
sofrimentos desta vida, florescerão na eternidade que não conhece ocaso [...]
pois, o amor mais ordenado e mais útil pelos cidadãos consiste em levá-los ao
culto do Sumo Deus e à religião. Este é o amor verdadeiro da pátria terrestre,
que te fará merecer a pátria celeste. 6
7 Destas palavras
depreende-se o pensamento político de Santo Agostinho. Para ele, a função da
política não se restringe apenas em proporcionar um bem-estar somente de cunho
material, terreno, mas salvaguardar valores inerentes à dignidade do ser
humano, pois este é transcendente e em meio às preocupações deste mundo na
aquisição dos valores relativos não pode prescindir do valor absoluto: Deus
único; Ele pode responder ao apelo do infinito que pulsa nos cidadãos da Cidade
Terrestre que anseiam chegar onde se encontram aqueles que se tornaram cidadãos
da pátria celeste. O exercício da função política em Santo Agostinho abrange a
pessoa humana inteira com seu corpo e sua alma. O pastor de Hipona delineia um
caminho teológico para aqueles que se sentem chamados para exercer cargos de
governo. Fá-los ver que se o fim relativo da política é garantir a ordem, a
tranqüilidade e o bem comum de todos os cidadãos, que são bens necessários mas
não absolutos, ela deve estar ancorada em Deus, a fim de que não se descuide de
promover aquela paz por excelência que só experimentam aqueles que usufruírem
de Deus como indica o salmista: O meu bem é estar unido a Deus (S1 72, 28).
Esta é para o doutor de Hipona a condição essencial para que a função política
atinja sua meta ultrapassando o limiar terreno e já experimentando um pouco o
refrigério da pátria celeste. Esta realidade, o doutor da graça também deixa
entrever quando diz na sua epístola ao governador macedônio da África: “A
piedade, pois, a saber, o culto do verdadeiro Deus, é útil para tudo: ela de
fato, nos ajuda a afastar ou avaliar as moléstias desta vida e nos conduz
àquela vida de salvação em que não devemos mais sofrer nenhum mal, mas somente
gozar do Sumo e eterno Bem”8
8 O exercício do
poder no pensamento agostiniano estará ameaçado ou mesmo fadado a destruir-se
se não for sustentado pelos princípios divinos. Os que foram chamados para
governar devem fazê-lo com a mente e o coração voltados para a eternidade, ou
pátria celeste, pois no dizer de Santo Agostinho eles foram criados e
constituídos por Deus.
9 Contudo, poderão
voltar-se contra Deus, o bem Supremo,
quando se deixam vencer pelas paixões desordenadas, passam a buscar sua
própria glória e não a do Criador
10. Aqui está
precisamente a origem do desvirtuamento da função política, por conseguinte da
arte de governar ocasionando daí a idolatria do poder, a sede de dominar e de
massacrar seus semelhantes, o perigo de governar a sociedade não buscando o bem
comum dos cidadãos mas o proveito pessoal. Quando Santo Agostinho dissertou
sobre esses assuntos, ele tinha diante dos olhos em primeiro lugar o Império
Romano que caíra devido ao obscurecimento do coração, a corrupção dos costumes
e o culto aos deuses pagãos, como ele indica com minúcia no primeiro livro da
Cidade de Deus. As organizações políticas só terão êxito quando seus membros se
conscientizarem que o bem da coletividade deve sempre prevalecer sobre
interesses de grupos particulares que monopolizam a função política colocando-a
apenas em vistas do bem particular. O bispo de Hipona diz claramente que não
haverá concórdia de fato na sociedade humana, enquanto não houver reto
exercício da arte de governar e administrar e isto só será possível quando
governantes e governados adorarem, aceitarem e prestarem culto ao verdadeiro
Deus. Do contrário, como declara o hiponense, o bom senso desaparecerá e virá
com toda força uma torrente de vícios que comprometerá o exercício do governo.
11 O governante,
dirigente político, deve agir de tal modo que o povo veja e perceba nele alguém
que se preocupa pela sua sorte temporal e que não mede esforços por construir
uma sociedade justa e fraterna. Os cidadãos devem se sentir amparados por leis
e sistemas de governo que garantam uma vida social digna, com melhores
condições de crescimento humano e espiritual, visando pleno desenvolvimento de
todas as dimensões do ser humano. Para que isso possa acontecer, faz-se
necessário que Deus esteja no centro de qualquer empreendimento, no caso
específico na base dos interesses políticos, como indica Santo Agostinho:
“Escolhe desde já o teu caminho, a fim de poderes ter glória verdadeira, não em
ti, mas em Deus [...]. Nós te convidamos, nós te exortamos a vir a esta pátria,
para que constes no número de seus cidadãos, cujo asilo é, de certo modo, a
verdadeira remissão dos pecados. Não prestes ouvido aos que degeneram de ti ...
É que nos tempos não buscam o repouso da vida, mas a segurança do vício. [...]
Volte-te, agora, para a pátria celeste. Por ela trabalharás pouco e nela terás
eterno e verdadeiro reino. Não encontrarás o fogo de veste, nem a pedra do
Capitólio, mas Deus, uno e verdadeiro, que não te porá limites ao poder, nem
duração a império [...]. Nela, a vitória é a verdade, a honra é a santidade, a
paz é a felicidade e a vida é a eternidade. [...] Evita, por conseguinte,
comunhão com os demônios, se queres chegar à cidade bem-aventurada.”
12 Pela passagem
citada, percebe-se o valor relativo da atividade política na Cidade de Deus.
Porém, não quer dizer que ela não seja necessária e nem deva ser exercida com
seriedade. Pelo contrário, ela torna-se ainda mais importante quando Santo
Agostinho apresenta seu sentido social e teológico ao descrevê-la como função
que deve ser exercida visando não somente o presente mas também a eternidade.
No pensamento Agostiniano sobre a política, não está evidentemente expresso um
desejo de que o agir humano em matéria de governo venha tornar a Cidade
Terrestre uma cópia da Cidade de Deus. Isso seria um sonho utópico, não
passaria de uma ficção, mesmo tendo em vista o elogio que Santo Agostinho faz
aos imperadores cristãos Constantino e Teodósio.
13 Ele sabe que o
homem é um peregrino sobre a terra, a pátria terrena não suprime o desejo de
felicidade plena que só será verdadeiramente preenchido na pátria celeste. Esse
relativismo político não desvaloriza as leis e iniciativas que possam surgir na
tentativa de resolver os problemas sociais da comunidade. Ao contrário, o
pensamento do fim último do homem, que é a Cidade Celeste, deve imprimir seu
sinal nas atividades políticas, evitando o amor próprio que constitui um
obstáculo na realização do bem comum. A Cidade Terrestre contempla e tem como
meta alcançar a divina caelestisque respublica, onde, como diz Agostinho
predomina o amor caritas: Não reina o amor à vontade própria e particular, mas
gozo do bem comum e imutável e a obediência da caridade, que de muitos faz um
só coração, ou seja, perfeita concórdia.
14 A política
conseguirá executar seu papel no seio da sociedade, ainda que não consiga e nem
seja sua função tornar este mundo um paraíso se ancorar seus projetos sobre
Deus Bem Absoluto. Para o bispo de Hipona, o exercício de dominar que significa
servir na linguagem cristã só triunfará quando tiver por origem e fundamento o
amor desinteressado.
___________________
1.cf. CHÀTELET, F.;
DAHAMEL, O.; PISTER, E. Dicionário de Obras Políticas. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1993, p. 20
2 De Civ. Dei XIX, 12.
3 Ccf. De Civ. Dei
XIV, 12.
4 Cf De Civ. Dei II,
21.
5 Cf De Civ. Dei XIX,
13.
6 Ibid., p. 153.
7 Epist. 104, 10.
8 Epist. 155, n. 17.
9 De Civ. Dei V, 1.
10 De Civ. Dei XXVIII,
1.
11 De Civ. Dei V, 12 e
13.
12 De Civ. Dei II, 29.
13 De Civ. Dei V, 25 e
26.
14 Ibid., p. 176.
https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/3736/3736_3.PDF
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