sexta-feira, 15 de julho de 2022

SANTO AGOSTINHO E A POLÍTICA

 


SANTO AGOSTINHO E A POLÍTICA


Na visão do pastor hiponense, a atividade política é algo fundamental para que haja na sociedade a tranqüilidade e a ordem. Através do exercício correto do poder, os governantes poderão prestar a todos um excelente serviço voltado para o bem comum. Contudo, a função política para Santo Agostinho não deve se limitar a resolver apenas problemas de cunho material. Como o ser humano é um todo, ela deve se esforçar para proporcionar aos cidadãos da pátria terrena condições para a prática do culto ao Deus verdadeiro. Do contrário nunca atingirá com autenticidade a concórdia social. Onde Deus não está presente a paz temporal torna-se impossível. Veremos também que a ética agostiniana se fundamenta no amor de Deus. Ela encontra sua verdadeira razão de ser, na prática do preceito evangélico “Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo”.

1 O Conceito Agostiniano de Política

1.1 O Fundamento da Política Agostiniana Como mencionei no capítulo anterior, a Cidade de Deus não é um tratado especificamente voltado para a função da política. Contudo, nela o santo doutor de Hipona lança algumas luzes sobre a origem e a finalidade da política no seio da sociedade humana. O pensamento político de Santo Agostinho foi forjado num tempo de crises tendo como referência duas tradições: a da cultura greco-romana e das Escrituras Judaico-Cristãs.

1 Como se sabe Agostinho bebeu nas fontes de Platão de onde certamente contemplou, depois tirou a imagem de uma Cidade Ideal. Mas Santo Agostinho era profundo conhecedor e admirador da história da Urbs como ele demonstra nos livros III e V da Cidade de Deus, quando relata com uma minúcia impressionante a fundação, a sucessão dos regimes, as crises internas, as guerras, os adversários e os heróis da Roma Antiga.

O pensamento Agostiniano acerca da política está permeado e fundamentado na transcendência do ser humano. Ele se articula com a Teologia sobre a qual deposita suas esperanças, pois a política, como função especificada da Cidade Terrestre, é importante enquanto atividade que promove a pax romana temporalis e ao mesmo tempo prepara ou remete para a Cidade Celeste.

2 O exercício do poder político em Agostinho, embora tenha um valor relativo, como aliás todo mundo criado, desempenha um papel importante na sociedade terrestre como meio que garante o bem comum e a segurança dos cidadãos da Civitas Terrestre. Estes cidadãos devem trabalhar para viver numa tranquillitas ordinis.

3 Evidentemente que esta tranqüilidade da ordem à qual se refere Santo Agostinho na De Civitate Dei só será uma realidade quando o exercício da função política for fundado no verdadeiro Amor na Caritas, como denomina o próprio Santo Agostinho. Sendo, porém, uma instituição exercida por homens marcados pelo pecado, a política para ser vivida com autenticidade e justiça, necessita da graça de Cristo. Santo Agostinho enfatiza que só haverá convivência justa nas organizações sociais quando Cristo for o alicerce e o centro, inspirando e ao mesmo tempo dirigindo as ações humanas.

4 Santo Agostinho em nenhum momento deixa de lembrar a soberania que Deus tem sobre o mundo e o homem. Quando este último reconhece e passa viver sob o Senhorio do seu Criador, as iniciativas humanas, dentre estas a política, atingirão seu fim nesta Cidade Terrestre e contribuirão para a felicidade dos cidadãos aqui e agora, preparando-os para a felicidade completa na Cidade Celeste. Para Santo Agostinho, a política constitui uma atividade fundamental para que no seio da sociedade humana haja o bem e a paz. A função política só será corretamente vivenciada se for pautada pelo interesse dos governantes em servir e prestar culto ao verdadeiro Deus: “Se, por conseguinte, se rende culto ao Deus verdadeiro, servindo com sacrifícios sinceros e bons costumes, é útil que os bons reinem por muito tempo e onde quer que seja. E não o é tanto para os governados como para os governantes. Quanto a eles, a piedade e a bondade, grandes dons de Deus, lhes bastam para felicidade verdadeira, que, se merecida, permite à gente viver bem nesta vida e conseguir depois a vida eterna.”5

 5 Sem esta preocupação, é impossível que se concretize o bem comum, pois os objetivos particulares dos dirigentes políticos prevalecem sempre sobre os interesses da coletividade, ocasionando as injustiças sociais, violência, as revoltas populares etc. A esse respeito convém citar as próprias palavras do santo hiponense: “Desterrada a justiça, que é todo reino, senão grande pirataria? E a pirataria que é, senão pequeno reino? Também é punhado de homens, rege-se pelo poderio de príncipe, liga-se por meio de pacto de sociedade... Se esse mal cresce, porque se lhe acrescentam homens perdidos, que se assenhoreiam de lugares, estabelecem esconderijos, ocupam cidades, subjugam povos, toma o nome mais autêntico de reino. Esse nome dá-lhe abertamente, não a perdida cobiça, mas a impunidade acrescentada.”

6 O santo pastor de Hipona reconhece que o exercício do poder temporal só encontrará sua verdadeira realização quando governantes e súditos se deixarem conduzir pela Bondade Divina. Para ele esse é o caminho para se tornarem participantes e irradiadores da Bondade de Deus, procurando a paz temporal ou felicidade temporal vivendo em comunhão com o Bem Supremo que é Deus. Somente nestes habitará a Verdadeira Felicidade.

.1.2 A Finalidade da Política

Parece oportuno mencionar e citar as palavras que o Santo bispo de Hipona dirigiu ao governador da Calama, Nectário. Elas resumem tudo quanto Santo Agostinho diz sobre a arte de governar a Cidade Terrestre: Também serviços prestados à pátria terrena, se fizeres com amor vero e religioso ganharás a pátria celeste [...] deste modo, proverás, de verdade, ao bem de teus concidadãos a fim de fazê-los usufruir não da falsidade dos prazeres temporais, nem da funestíssima impunidade da culpa, mas da graça da felicidade eterna. Suprimam-se todos os ídolos e todas as loucuras, convertam-se as pessoas ao culto do verdadeiro Deus e a pios e castos costumes, e então verás a tua pátria florir não segundo a falsa opinião dos estultos, mas segundo a verdade professada pelos sábios, quando esta pátria, em que nasceste para a vida mortal, será uma porção daquela pátria para a qual se nasce não com o corpo, mas pela fé, onde [...], após o inverno cheio de sofrimentos desta vida, florescerão na eternidade que não conhece ocaso [...] pois, o amor mais ordenado e mais útil pelos cidadãos consiste em levá-los ao culto do Sumo Deus e à religião. Este é o amor verdadeiro da pátria terrestre, que te fará merecer a pátria celeste. 6

7 Destas palavras depreende-se o pensamento político de Santo Agostinho. Para ele, a função da política não se restringe apenas em proporcionar um bem-estar somente de cunho material, terreno, mas salvaguardar valores inerentes à dignidade do ser humano, pois este é transcendente e em meio às preocupações deste mundo na aquisição dos valores relativos não pode prescindir do valor absoluto: Deus único; Ele pode responder ao apelo do infinito que pulsa nos cidadãos da Cidade Terrestre que anseiam chegar onde se encontram aqueles que se tornaram cidadãos da pátria celeste. O exercício da função política em Santo Agostinho abrange a pessoa humana inteira com seu corpo e sua alma. O pastor de Hipona delineia um caminho teológico para aqueles que se sentem chamados para exercer cargos de governo. Fá-los ver que se o fim relativo da política é garantir a ordem, a tranqüilidade e o bem comum de todos os cidadãos, que são bens necessários mas não absolutos, ela deve estar ancorada em Deus, a fim de que não se descuide de promover aquela paz por excelência que só experimentam aqueles que usufruírem de Deus como indica o salmista: O meu bem é estar unido a Deus (S1 72, 28). Esta é para o doutor de Hipona a condição essencial para que a função política atinja sua meta ultrapassando o limiar terreno e já experimentando um pouco o refrigério da pátria celeste. Esta realidade, o doutor da graça também deixa entrever quando diz na sua epístola ao governador macedônio da África: “A piedade, pois, a saber, o culto do verdadeiro Deus, é útil para tudo: ela de fato, nos ajuda a afastar ou avaliar as moléstias desta vida e nos conduz àquela vida de salvação em que não devemos mais sofrer nenhum mal, mas somente gozar do Sumo e eterno Bem”8

8 O exercício do poder no pensamento agostiniano estará ameaçado ou mesmo fadado a destruir-se se não for sustentado pelos princípios divinos. Os que foram chamados para governar devem fazê-lo com a mente e o coração voltados para a eternidade, ou pátria celeste, pois no dizer de Santo Agostinho eles foram criados e constituídos por Deus.

9 Contudo, poderão voltar-se contra Deus, o bem Supremo,  quando se deixam vencer pelas paixões desordenadas, passam a buscar sua própria glória e não a do Criador

10. Aqui está precisamente a origem do desvirtuamento da função política, por conseguinte da arte de governar ocasionando daí a idolatria do poder, a sede de dominar e de massacrar seus semelhantes, o perigo de governar a sociedade não buscando o bem comum dos cidadãos mas o proveito pessoal. Quando Santo Agostinho dissertou sobre esses assuntos, ele tinha diante dos olhos em primeiro lugar o Império Romano que caíra devido ao obscurecimento do coração, a corrupção dos costumes e o culto aos deuses pagãos, como ele indica com minúcia no primeiro livro da Cidade de Deus. As organizações políticas só terão êxito quando seus membros se conscientizarem que o bem da coletividade deve sempre prevalecer sobre interesses de grupos particulares que monopolizam a função política colocando-a apenas em vistas do bem particular. O bispo de Hipona diz claramente que não haverá concórdia de fato na sociedade humana, enquanto não houver reto exercício da arte de governar e administrar e isto só será possível quando governantes e governados adorarem, aceitarem e prestarem culto ao verdadeiro Deus. Do contrário, como declara o hiponense, o bom senso desaparecerá e virá com toda força uma torrente de vícios que comprometerá o exercício do governo.

11 O governante, dirigente político, deve agir de tal modo que o povo veja e perceba nele alguém que se preocupa pela sua sorte temporal e que não mede esforços por construir uma sociedade justa e fraterna. Os cidadãos devem se sentir amparados por leis e sistemas de governo que garantam uma vida social digna, com melhores condições de crescimento humano e espiritual, visando pleno desenvolvimento de todas as dimensões do ser humano. Para que isso possa acontecer, faz-se necessário que Deus esteja no centro de qualquer empreendimento, no caso específico na base dos interesses políticos, como indica Santo Agostinho: “Escolhe desde já o teu caminho, a fim de poderes ter glória verdadeira, não em ti, mas em Deus [...]. Nós te convidamos, nós te exortamos a vir a esta pátria, para que constes no número de seus cidadãos, cujo asilo é, de certo modo, a verdadeira remissão dos pecados. Não prestes ouvido aos que degeneram de ti ... É que nos tempos não buscam o repouso da vida, mas a segurança do vício. [...] Volte-te, agora, para a pátria celeste. Por ela trabalharás pouco e nela terás eterno e verdadeiro reino. Não encontrarás o fogo de veste, nem a pedra do Capitólio, mas Deus, uno e verdadeiro, que não te porá limites ao poder, nem duração a império [...]. Nela, a vitória é a verdade, a honra é a santidade, a paz é a felicidade e a vida é a eternidade. [...] Evita, por conseguinte, comunhão com os demônios, se queres chegar à cidade bem-aventurada.”

12 Pela passagem citada, percebe-se o valor relativo da atividade política na Cidade de Deus. Porém, não quer dizer que ela não seja necessária e nem deva ser exercida com seriedade. Pelo contrário, ela torna-se ainda mais importante quando Santo Agostinho apresenta seu sentido social e teológico ao descrevê-la como função que deve ser exercida visando não somente o presente mas também a eternidade. No pensamento Agostiniano sobre a política, não está evidentemente expresso um desejo de que o agir humano em matéria de governo venha tornar a Cidade Terrestre uma cópia da Cidade de Deus. Isso seria um sonho utópico, não passaria de uma ficção, mesmo tendo em vista o elogio que Santo Agostinho faz aos imperadores cristãos Constantino e Teodósio.

13 Ele sabe que o homem é um peregrino sobre a terra, a pátria terrena não suprime o desejo de felicidade plena que só será verdadeiramente preenchido na pátria celeste. Esse relativismo político não desvaloriza as leis e iniciativas que possam surgir na tentativa de resolver os problemas sociais da comunidade. Ao contrário, o pensamento do fim último do homem, que é a Cidade Celeste, deve imprimir seu sinal nas atividades políticas, evitando o amor próprio que constitui um obstáculo na realização do bem comum. A Cidade Terrestre contempla e tem como meta alcançar a divina caelestisque respublica, onde, como diz Agostinho predomina o amor caritas: Não reina o amor à vontade própria e particular, mas gozo do bem comum e imutável e a obediência da caridade, que de muitos faz um só coração, ou seja, perfeita concórdia.

14 A política conseguirá executar seu papel no seio da sociedade, ainda que não consiga e nem seja sua função tornar este mundo um paraíso se ancorar seus projetos sobre Deus Bem Absoluto. Para o bispo de Hipona, o exercício de dominar que significa servir na linguagem cristã só triunfará quando tiver por origem e fundamento o amor desinteressado.

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1.cf. CHÀTELET, F.; DAHAMEL, O.; PISTER, E. Dicionário de Obras Políticas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1993, p. 20

2 De Civ. Dei XIX, 12.

3 Ccf. De Civ. Dei XIV, 12.

4 Cf De Civ. Dei II, 21.

5 Cf De Civ. Dei XIX, 13.

6 Ibid., p. 153.

7 Epist. 104, 10.

8 Epist. 155, n. 17.

9 De Civ. Dei V, 1.

10 De Civ. Dei XXVIII, 1.

11 De Civ. Dei V, 12 e 13.

12 De Civ. Dei II, 29.

13 De Civ. Dei V, 25 e 26.

14 Ibid., p. 176.

https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/3736/3736_3.PDF

 

 

 

 




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