A caridade e o reto uso dos bens
Francisco
Venceslau de Oliveira Jales1
João
Paulo Araújo Pimentel Lima2
É importante
salientar que o desejo que Agostinho demonstra pela igualdade no seu Comentário
a primeira carta de São João, não se refere à abolição das classes ou funções
sociais, mas à igualdade de dignidade. Pois os bens mínimos destinados à vida
humana foram dados por Deus a todos para serem usados ordenadamente:
Deus,
pois, sapientíssimo criador e justíssimo ordenador de todas as naturezas, que
na terra estabeleceu o gênero humano para ser-lhe o mais belo ornamento, deu
aos homens certos bens convenientes a esta vida, quer dizer, a paz temporal,
pelo menos a de que nosso destino mortal é capaz, a paz na conservação,
integridade e união da espécie, tudo o que é necessário à manutenção ou à
recuperação dessa paz, como, por exemplo, os elementos na convivência e no
domínio de nossos sentidos, a luz visível, o ar respirável, a água potável e
tudo quanto serve para alimentar, cobrir, curar e adornar o corpo, sob
condição, muito justa, por certo, de que todo mortal que fizer uso legítimo
desses bens apropriados à paz dos mortais os receberá maiores e melhores, a
saber, a paz da imortalidade, acompanhada de glória e de honra próprias da vida
eterna, para gozar de Deus e do próximo em Deus.36
E para que esses bens
sejam usados ordenadamente, a fim de obtenhamos tanto a paz terrena como a
celeste, Deus deixou dois preceitos:
... o amor a Deus e o
amor ao próximo, nos quais o homem descobre três seres como objeto de amor,
isto é, Deus, ele mesmo e o próximo, e não pecar , amando-se a si mesmo, quem
ama a Deus, é lógico leve cada qual a amar a Deus o próximo a quem o mandam
amar como a si mesmo. Assim deve fazer com a esposa, com os filhos, com os
domésticos e com os demais homens com quem puder, como quer olhe o próximo por
ele, caso venha a necessitar. Assim terá paz com todos em tudo que dele
dependa, essa paz dos homens que é a ordenada concórdia. Eis a ordem que se há
de seguir: primeiro, não fazer mal a ninguém; segundo, fazer bem a quem a gente
possa.37
Tal ordem precisa ser
rigorosamente respeitada para que os homens mantenham, entre si, uma relação de
colaboração mútua e não de dominação, pois Deus: “Quis que o homem racional,
feito à sua imagem, dominasse unicamente os irracionais, não o homem ao
homem”38. Portanto, para garantir o ideal de igualdade, mesmo entre aqueles que
mandam e os que obedecem (seja em relação aos deveres domésticos ou políticos),
é preciso que exista um vínculo baseado não no domínio, mas no amor mútuo.
Pois, o homem justo até quando exerce autoridade, o faz servindo, e a “...
razão é que não manda por desejo de domínio, mas por dever de caridade, não por
orgulho de reinar, mas por misericórdia de auxiliar” 39 . Não podemos esquecer
que a busca pela igualdade atinge também um sentido político quando é estimulada
a participação na vida pública a fim de tornar a sociedade mais justa e
pacífica40. No entanto, se não é possível criar as condições objetivas de igualdade,
cada um deve fazer a sua obrigação, que começa pelo atendimento aos mais
pobres. Portanto, temos a dever de dividir e quem não compartilha o seu
supérfluo não age com caridade e não está com Deus. Para Agostinho, numa
sociedade desigual, a atitude ideal é que ocorra a doação do excedente, pois
aquilo que o homem tem de supérfluo já não lhe pertence mais, porque os bens
são de quem deles precisa; de modo que “... possuem bens alheios os que possuem
bens supérfluos” 41 . O apego aos bens materiais é contrário ao preceito da
caridade e se torna um obstáculo para a vida feliz. Quando, ao invés de compartilhar
o excedente, o homem acumula riquezas, atrai para si dois grandes problemas. O
primeiro é a negação da ordem do amor e, por conseguinte, o afastamento de
Deus. Pois, se Deus está onde existe a caridade, aquele que não a pratica
também não vivencia a presença de Deus. E o segundo são os próprios males
oriundos do acumulo de bens e riquezas, que o afastam da vida feliz:
As riquezas, o brilho
das honras e as demais vaidades com as quais os mortais se julgam felizes — por
não conhecerem a verdadeira felicidade — nada trazem de seguro. Pois, que
consolo podem trazer, quando para essas pessoas é mais importante a ostentação
do que o necessário? Quando os bens adquiridos atormentam mais pelo temor de os
perder, do que pelo prazer de os possuir? Com tais bens os homens não se tornam
bons. Os que chegam a se tornar bons, na verdade, é pelo bom uso que deles
fazem. E isso é o que torna esses bens algo de bom.42
Portanto, se não são
usados retamente, os bens constituem um obstáculo para a vida feliz, e seu acúmulo
é nocivo para a vida dos homens. Para Agostinho, quem amontoa riquezas,
preenche-se de perturbações e afasta-se da beatitude. Logo, é preferível ter
uma vida moderada; e o supérfluo deve ser obrigatoriamente divido, pois o ato
de acumular constitui grave transgressão da ordem do amor. Poder-se-ia, então,
perguntar: já que o acúmulo de bens constitui um obstáculo para a vida feliz e,
de acordo com a ordem do amor, é imperativo doar o excedente, existe, no
pensamento de Agostinho, uma predileção para a comunhão de bens e, por
conseguinte, certo desprezo pela propriedade privada? A resposta seria
positiva, pois, como demonstram seus escritos, ele tem uma clara preferência
pelo que é comum em detrimento do que é privado43 .
Contudo, não há uma
explícita condenação da propriedade privada. O que existe, na verdade, é uma
tolerância à propriedade privada se considerada o uso correto da mesma. Segundo
Ramos, o que Agostinho afirma é que a posse dos bens deve ser orientada pela
ordem do amor44. E, conforme já apresentamos, esta ordem nos impele à
assistência aos mais pobres e ao compartilhamento dos bens supérfluos. E no
caso específico do Estado, é preciso que ele funcione para diminuir as
injustiças, tornando menos nociva a opressão sobre os mais frágeis. Não existe,
portanto, uma acomodação às regras civis. A lei terrena deve ser guiada pela
lei eterna e, assim, garantir o mínimo de injustiças, enquanto a verdadeira
amizade, baseada no amor gratuito, não é efetivada. Por esse motivo, torna-se
claro que há, no pensamento social de Agostinho, uma preferência do comum sobre
o privado. Tanto os homens como Estado devem agir priorizando o bem comum. Pois
“... para a caridade importa mais o que é comum do que o que é privado”45 uma
vez que “... é no privado que se deleita toda a soberba”46 . Em outros
momentos, entretanto, o Bispo de Hipona chega a tecer críticas contundentes aos
bens particulares, inclinando seu pensamento para uma apologia à comunhão dos
bens. Diz ele: “... necessariamente se torna soberbo quem possui bens
particulares”47 . Neste sentido, poderíamos então considerar a posse de
qualquer bem um passo para a soberba? Agostinho desenvolve uma resposta a essa
pergunta em uma longa e importante passagem do seu Comentário aos Salmos:
Quem, contudo, quer
arranjar um lugar para o Senhor, contente fica não com seus bens particulares,
mas com os comuns. Foi isso que os fiéis então fizeram com seus próprios bens;
puseram-nos em comum. Então perderam o que tinham de seu? Se os possuíssem
sozinhos, cada qual teria o que era seu; teria apenas isso; ao tornarem comuns
seus bens particulares, também os bens dos outros se fizeram seus. A caridade
esteja atenta. Por causa dos bens que cada um de nós possui, existem contendas,
inimizades, discórdias, lutas entre os homens, tumultos, dissensões,
escândalos, pecados, iniquidades, homicídios. Por que razão? Por causa do que
possuímos em particular. Acaso brigamos por causa do que possuímos em comum? Em
comum respiramos o mesmo ar, vemos em comum o mesmo sol. Felizes, portanto, os
que de tal modo dispõem um lugar para o Senhor, que não gostam de ter bens
particulares.48
Não se pode negar que
há em Agostinho uma veemente defesa da comunhão dos bens. Pois, o
compartilhamento destes é um caminho para o fim das pelejas entre os homens, ao
passo que o seu acúmulo inclina a humanidade à soberba. Por fim, vejamos como
bispo de Hipona antepõe o comum ao privado na sua obra Regra para os servos de
Deus:
Igualmente, que ninguém
trabalhe para si próprio, mas cada um de vós trabalhe em favor de todos. E
nisso ponha mais aplicação, constância e zelo do que se trabalhasse em
benefício pessoal [...]. Isso significa que o bem comum deve se antepor ao bem
particular e não o bem particular ao comum. E, assim, podereis medir vosso
crescimento, pelo modo com que vos preocupais com o interesse comum,
colocando-o acima de vosso interesse particular.49
Apesar de ter sido
escrita para o uso monástico, a Regra traz ensinamentos universais importantes
que corroboram as citações das outras obras. Portanto, não restam dúvidas de
que, entre o comum e o privado, Agostinho demonstra uma clara preferência pela
vida em comum, ou seja, pela comunhão dos bens
Conclusão
Embora o Bispo de
Hipona não aborde os temas de forma sistemática, é possível traçar, através do
corpus agostiniano, os caminhos do seu rigoroso pensamento. Acerca da caridade,
buscamos realizar uma análise, à luz do seu pensamento social, levantando
passagens de seus tratados, comentários e cartas, que fossem suficientes para
comprovar a tese final deste texto: o amor a Deus implica necessariamente no
amor fraterno, e este se concretiza na prioridade do comum frente ao
particular, no que diz respeito o uso dos bens. Desse modo, entendemos que o
compromisso com o bem comum, exposto por Agostinho, deve nortear a lei terrena.
E mesmo que a opção pela comunhão dos bens e a igualdade social jamais seja
alcançada, ela funciona como um ideal, ou seja, como modelo de uma sociedade
onde imperam a caridade e a justiça. Pois uma vida orientada pela caridade
fraterna é, sem dúvida, uma vida a serviço do outro.
NOTAS
1 Professor do Curso de Filosofia da Universidade Estadual do Ceará – UECE.
2 Mestre em
Filosofia pela Universidade Federal do Ceará – UFC
36 De civ. Dei, XIX, 13.
37 De civ. Dei, XIX, 14.
38 De civ. Dei, XIX, 15
39 De civ. Dei, XIX, 14
40 Cf. Ep., 138, III, 17.
41 En., Ps., 147, 12.
42 Ep. 130, 1, 3.
43 Cf. Ep.
140, 24-25.
44 Cf. RAMOS, Manfredo. A ideia de
estado na doutrina ético-política de Santo Agostinho: um estudo do Epistolário
comparado com o “De Civitate Dei”. Porto Alegre: Letra&Vida, 2015. p. 262.
45 Ep. 140, 25, 62. “Y pues la caridad
mira más por lo común que por lo privado”
46 Ep. 140, 24, 61. “en lo privado en
lo que se deleita toda soberbia”.
47
En. Ps., 131, 7.
48
En. Ps., 131, 5.
49
Reg., V, 31
Referências
AURELIUS AUGUSTINUS. A Cidade de Deus: contra os pagãos (livros I-X). Tradução de Oscar Paes Leme. Petrópolis: Vozes/ São Paulo: Federação Agostiniana Brasileira, 1991, vol. I, 3ª ed. ______. A Cidade de Deus: contra os pagãos (livros XI-XXII). Tradução de Oscar Paes Leme. Petrópolis: Vozes/ São Paulo: Federação Agostiniana Brasileira, 1990, vol. II, 2ª Ed
. ______. A doutrina cristã: manual de exegese e formação cristã. Tradução, adaptação e notas de Nair de Assis Oliveira. 2 ª ed. São Paulo: Paulus, 2007.
______. A disciplina cristã. Tradução de Fabricio Gerardi; introdução e notas de Heres Drian de O. Freitas. São Paulo: Paulus, 2013. [col. “Patrística”, vol. 32].
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______. Cartas. Biblioteca de Autores Cristianos [Obras completas - versión española]. Disponível em: . Acesso em: 10 mar. 2015.
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______. Comentário aos Salmos: Salmos 51-100. Tradução das monjas beneditinas do Mosteiros de Maria Mãe de Cristo. São Paulo: Paulus, 1997.
______. Comentário aos Salmos: Salmos 101-150. Tradução das monjas beneditinas do Mosteiros de Maria Mãe de Cristo. São Paulo: Paulus, 1997.
______. Comentário da primeira epístola de São João. Tradução e notas de Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulinas, 1986.
______. Confissões. Tradução de Maria Luiza Jardim Amarante. 21 ª ed. São Paulo: Paulus, 2009.
______. Regra para os servos de Deus. In: BOFF, Clodovis. A regra de Santo Agostinho. Apresentação e comentários de Clodovis Boff. Petrópolis: Vozes, 2009.
NERI, Demetrio. Filosofia moral: manual introdutório. Tradução de Orlando Soares Moreira. São Paulo: Loyola, 2004.
RAMOS, Manfredo.
A ideia de estado na doutrina ético-política de Santo Agostinho: um estudo do
Epistolário comparado com o “De Civitate Dei”. Porto Alegre: Letra&Vida,
2015.
file:///C:/Users/DELL/Downloads/moraesunesp,+9.franciscojoao%20(1).pdf
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