Fé e política
se abraçarão (I)
Por Prof. Dr. Fernando Altemeyer Júnior
I.
A crise de paradigmas
Estamos vivendo uma grande e importante crise de
culturas e de civilizações, fato histórico que exige radical mudança de
paradigmas, analíticos, antropológicos e religiosos.
A política vista e compreendida
como espaço de tomada de decisões, pessoal e coletivo tem como base a
racionalidade, particularmente a cartesiana e a científica. Não se admitiu nos
últimos dois séculos e meio a compaixão e as expressões estéticas ou musicais,
como também constitutivas do “éthos” livre e solidário que produz uma
sociedade fraterna. Afirmou-se o “Lógos” negando-se o corpo. Propôs-se a
política do Estado e negou-se a política do sujeito concreto. Criou e
aprofundou-se a dicotomia antropológica e o fosso entre as classes e os países
no mundo e no submundo. Em certos países a ideologia dominante negou a pessoa
em favor da mercadoria.
A palavra política perdeu a beleza e ficou nua
(assim como o rei e os políticos). Chegamos ao desencanto e à vergonha.
Negando-se o corpo e o sujeito político, negou-se a pessoa em nome do
liberalismo econômico. Liberdade política tornou-se privilégio de poucos e
negação de muitos.
A partir do século XVIII com a Revolução Francesa
1789, a liberdade se torna direito a ser vivenciado só por homens e de certa
elite social. A constituição da cidadania burguesa baseada no tripé: liberdade,
igualdade e fraternidade; construiu a modernidade ocidental e criou
expectativas de desejos e de uma sociedade de consumo traumatizada.
“Riqueza e penúria são apenas
as duas faces de uma mesma moeda; os grilhões da necessidade não precisam ser
de ferro, podem ser feitos de seda.” (Hannah Arendt. Da revolução.
São Paulo: Ática/UnB, 1988, p. 111.)
A política capitalista foi questionada pelo modelo
socialista, do Leste Europeu, Cuba e de alguns países africanos e por culturas
milenares, africanas e asiáticas, particularmente de corte islâmico e budista.
Entretanto, a crise do modelo socialista gerou novo impasse. A hora é de
transfiguração pela mesma política.
“Não podemos desesperar. A
razão deve ser suficientemente forte para pensar ela mesma sua superação e se
recolocar a serviço da vida. E a vida deve ser suficientemente sábia para
aceitar a lei da realidade e não querer senão o que é racionalmente possível.
Mas existe na vida um princípio que vai mais longe que ela mesma; ele pode se
voltar contra ela para destruí-la, ele pode também acolhê-la e transfigurá-la.
Mas o segredo desta transfiguração não é nem da razão, nem da vida. O que advém
da liberdade, somente a liberdade pode dizer. Pois, a linguagem da liberdade é,
uma linguagem escondida” (Jean Ladriere. Vie sociale et destinée.
J. Duculot, Gembloux, 1973, p. 225).
Assim podemos compreender porque particularmente
nestes dois últimos séculos, o Ocidente segundo Roger Garaudy torna-se um
“acidente”.
“Essa maneira de os ‘ocidentais’
considerarem o indivíduo como o centro e a medida de tudo quanto há, de reduzir
toda realidade ao conceito, isto é, de erigir em valores supremos a ciência e
as técnicas como meio de manipular as coisas e os homens, é uma exceção
minúscula na epopeia humana de três milhões de anos” (Roger Garaudy. O
Ocidente é um acidente — por um diálogo das civilizações. Rio de Janeiro:
Salamandra, 1978, p. 1).
O novo nome da política deve ser liberdade e
libertação. Assim o proclamou solenemente a Teologia na América Latina.
A libertação assume caráter essencial da própria
pessoa humana e esta mesma libertação constitui-se como ato soberano do sujeito
popular. É verdade que esta liberdade cristalizada no neoliberalismo escravizou
centenas de culturas e classes subalternas diante da hegemonia global do
Mercado Total, este sim, livre e absoluto. Verificamos também que mulheres,
crianças e negros ainda não sabem no cotidiano da vida o que este vocábulo
significa em termos de dignidade e respeito de sua cidadania. Torna-se,
portanto, lapidar, a fala do Papa João XXIII, que afirma que as bases inseparáveis
de uma nova civilização, são quatro: justiça, liberdade, paz e solidariedade.
As quatro somadas e não isoladas, poderão garantir uma verdadeira democracia.
Necessitamos de uma outra base para a política, e
cremos ser fundada numa ética dos pobres e na rejeição do fatalismo e da
discriminação.
“A recriação da ética pelos novos
movimentos sociais está apontando para novos estilos de vida. Há, hoje, a
emergência de um anseio profundo de liberdade na esfera da realização das
pessoas, a partir do mundo das aspirações e dos desejos; um senso muito
profundo do direito à diferença, à alteridade; um sentido novo das experiências
comunitárias em tensão entre o planetário (procura de universalização) e o
pequeno (emergência e reconhecimento do pluralismo social e cultural); a
redescoberta do sentido do prazer, da gratuidade, da celebração e da fantasia,
que inclusive questiona a ética moderna do trabalho e a relação do homem com a
natureza; a abertura de novos espaços para a experiência do sagrado na vida humana” (CNBB, Ética: Pessoa e
Sociedade, Paulinas, São Paulo, nº 64, pp. 27-28).
Assim as recorrentes noções da “liberdade de”
(assumida como livre-arbítrio) e da “liberdade para” (assumida como o conjunto
das leis morais e da convivência ética), transformaram-se após a dura
experiência das duas grandes guerras mundiais, numa exigência global de plena
liberdade política e social, chamada cidadania — a POLITEIA dos gregos, vivida
plenamente na política (descrita nas obras de Platão e Aristóteles).
“Quando ela se exerce pela
força, poderemos chamá-la tirânica, e quando seus préstimos, livremente
oferecidos, são livremente aceitos pelo rebanho dos bípedes, poderemos chamá-la
política” (Platão, Político, 276e, in: Pensadores, vol. III,
Abril Cultural, São Paulo, 1972, p. 231).
A expressão teórica da liberdade ganhou carnalidade
e exigência ética, particularmente na América Latina, mas também em lutas
memoráveis na África do Sul e Sri-Lanka. Hoje a liberdade deve coligar-se à
defesa da vida dos pobres e dos excluídos pelo atual sistema de morte
neoliberal justificado pela ideologia da satisfação burguesa, hoje massificada
pela mídia eletrônica.
II. A vida dos pobres: O critério
da fé cristã
A vida continua sendo nosso
grande paradigma, e podemos nos lembrar do grande Hipócrates: “Que o teu
alimento seja o teu remédio, e, que o teu remédio seja o teu alimento”.
Mas, lembram-nos as boas nutricionistas que há uma
segunda chave para defender e servir à vida: “A qualidade é dada pela
variedade”. Assim não é demais relembrar que a questão da variedade (não
dispersão, nem confusão, nem centralismo) é essencial para a saúde de nossa
prática da liberdade.
Nossos alimentos estarão de fato nos fortalecendo
em nosso serviço?
Assumimos os quatro pilares da vida democrática (liberdade,
solidariedade, paz e justiça social) em nossos projetos e práticas cotidianas?
Somos prisioneiros das estruturas? Caminhamos para o centralismo, em nome da
liberdade? Esta era importante pergunta do Professor Souza Martins ao Frei
Betto sobre a criatividade e a imaginação:
“A constituição de uma central
de movimentos populares retira deles a vitalidade que lhes é própria, a
criatividade e a imaginação tão necessárias à renovação social e política de
uma sociedade como a nossa. Penso que um caminho poderia ser o da criação de um
grupo de avaliação e acompanhamento das organizações populares, que pudesse
reconhecer as peculiaridades dessa forma de expressão das demandas sociais”
(José de Souza Martins, “Carta ao Frei Betto”, in: Quinzena 168,
CPV, mimeo, São Paulo, 31/8/1993, p. 18).
Trabalhamos com profissionalismo e dignidade,
dentro de nosso próprio dia a dia? Somos profissionais de que e a serviço de
quem? Esta é uma pergunta que nasce do próprio campo da fé cristã. É uma
pergunta de valores e ética coletiva. Como conciliar o serviço voluntário,
sempre presente, e uma decidida, inteligente e articulada ação transformadora
que seja eficaz?
Somos desafiados por nossa própria prática a nos
repensar, a viver sempre em movimento, e a melhor compreender nosso papel na
humanização do humano situado neste contexto desumano. Qualquer recente visita
a um hospital público, ou mesmo a uma escola, nos deixa imediatamente
impactados. Dramaticamente impactados.
Face aos atuais milenarismos que
ressurgem, muitos pensam que já chegamos ao fim do mundo. Ou, pelo menos, ao
fim do Brasil enquanto projeto de nação. Querem excluir-se do país ou temem
lutar por uma resposta coletiva. É a filosofia do “cada um por si” que
faz virar sucesso, mediocridades como os programas do mundo televisivo. Será
tudo uma loteria solitária ou existem caminhos comunitários? Por onde caminhar?
Que respostas oferecer aos diferentes contextos sociopolíticos com os quais nos
confrontamos? Muitos falam de risco e de alternativas, mais quais são elas
efetivamente, para além de palavras e discursos.
Ecoa ainda em nossos ouvidos a voz inspirada de
Simone de Beauvoir:
“Palavras; é tudo o que eles
tinham a me oferecer: a liberdade, a felicidade, o progresso; é desta carne oca
que se alimentam hoje em dia” (Simone de Beauvoir, Tous les hommes
sont mortels, Gallimard, Paris, 1946, p. 369).
Mas, felizmente, existe outro caminho.
Em visita que fiz a uma favela na Baixada
Fluminense, em Nova Iguaçu, com o incrível nome de Lírio do Vale, presenciei
como a vida se bate cotidianamente com a doença e a miséria. Gente de fé
realiza o ato do amor cristão. De forma concreta e solidária. Como testemunha
dos valores que recebeu de Deus em suas vidas. Lá dentro da favela, mulheres se
organizam, batalham e fazem surgir pequenas sementes de comunhão,
sensibilização e organização popular. Junto às crianças e aos adultos. Em meio
às múltiplas dificuldades, brota um lírio naquele Vale de Lágrimas. Este
exemplo que não é único estimula e muito! Pois a chave de nossa política é
esta: vir de baixo, construir a partir dos pequenos.
Outra visita feita à Casa Vida em São Paulo, lugar
de convivência de crianças portadoras do vírus HIV, me fez perceber com
agudeza, que é preciso que quem vive a fé e a política em favor das crianças, particularmente
daquelas situadas em realidades de conflito, reveja com frequência sua ação,
sua emoção e sua espiritualidade (motivação). Tempos de ausculta e silêncio
necessitam impor uma interrupção nas gélidas agendas. A eficácia não pode matar
a gratuidade.
O caminho da fé cristã assume os riscos do
cotidiano e reabastece sua esperança na celebração da Ceia do Senhor.
(CONTINUA
NO PRÓXIMO DOMINGO...)
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