A verdadeira amizade em
Santo Agostinho
Sidney de Paula Mendes
Não é bom que o homem esteja só.[1]
Aurélio Agostinho, um númida, um africano do norte,
filosofando na maturidade de sua fé cristã, toma a decisão de confessar-se a
todo gênero humano[2] e
ousa discorrer sobre um tema já minuciosamente destrinçado em filosofia por
aquela que talvez tenha sido a mente filosófica mais universal dos gregos, a
saber, Aristóteles[3].
Agostinho discorre sobre a amizade. Entretanto, diferentemente do estagirita,
algo genuinamente novo orientou a reflexão de Agostinho: a concepção cristã de
Deus. Nessa linha de pensamento, o bispo de Hipona afirma que só é verdadeira
amizade aquela fundamentada em Deus e cuja união se dá na caridade que é fruto
do Espírito Santo[4].
Antes, porém, de conceber este conceito luminoso de
amizade, Agostinho confessa ter percorrido os tortuosos
caminhos da amizade corrompida, do consórcio e
da amizade fundamentada na satisfação do prazer e interesses próprios.
Na releitura que fizera de sua vida, o bispo de Hipona pode ver o que de fato
não fora amizade e, com o auxilio do Cristianismo, pode conceber e cultivar
verdadeiras amizades.
1 – Amizade Corrompida
Agostinho relata, nas suas Confissões, ter
vivenciado, na aurora de sua adolescência, a amizade ao nível da paixão
corporal, ao que ele próprio chamou torpezas e corrupções carnais de sua alma.
Agostinho reconhece que o tufão da puberdade foi nele de uma violência sem
precedentes, a tal ponto que fê-lo buscar satisfação em prazeres infernais,
ousando até entregar-se a tenebrosos amores.
Giovanni Papini viu nas palavras de Agostinho a
autodenúncia de práticas homossexuais. De fato vêmo-lo relatar, com horror de
si mesmo, que nas relações de alma para alma não se continha em moderação
“conforme o limite luminoso da amizade”[5].
Por que carregaria tanto nas palavras? “Não se
trataria de amizade caso se referisse a mulheres públicas ou honestas, quando
Agostinho alude a seus amigos pensa sempre em homens, e não havia a moda, em
seu tempo, de dar-se a uma amante o nome de amiga. Talvez não fosse fácil, na
pequena Tagaste, a um moço muito novo, pobre e inexperiente, freqüentar casas
de mulheres, ao passo que não lhe era vedado entreter com rapazes de sua mesma
idade relações intimas que não despertavam suspeitas”[6].
Ademais, a autodenúncia é mais explicita no que vai
relatado ao início do Livro III. Aí o termo também (etiam)[7] é
revelador. Agostinho o usa em alusão à concubina com quem vivera quinze anos e
com quem tivera um filho. As amizades manchadas com torpe concupiscência de que
fala o bispo de Hipona eram, portanto, amizades masculinas.
2 – O Consórcio
Agostinho realça a distinção dos termos amizade e
consórcio, no que tange ao relacionamento entre pessoas; para ele, o consórcio
implica cumplicidade “que nada vale”[8],
ao mesmo tempo que uma pressão psicológica que desrespeita o verdadeiro ser do
outro, travando o crescimento e a conseqüente expansão de sua individualidade.
Assim, no consórcio, o homem age ora fundamentado no desejo de ser louvado
pelos parceiros, ora por medo de proceder diferente, ora pelo prazer de saber
que está cometendo algo ilícito.
Na análise que faz do consórcio no roubo das pêras[9],
o bispo vê o poder de influência do grupo sobre sua pessoa e realça a
negatividade dessa influência quando confessa que sozinho não
praticaria tal ação[10].
O consórcio é um aguçador dos vícios em detrimento das virtudes, um indutor ao
pecado. Vê-se aí que ele distancia originariamente da amizade.
3 – A Amizade Fundamentada no Egoísmo
O termo egoísmo, forjado no século XVIII para
significar a atitude de quem dá predominante importância a si mesmo ou aos seus
próprios juízos, sentimentos ou necessidades, e pouco ou nada se preocupa com
os outros é um auxilio para a compreensão do cap. 4 do Livro IV das Confissões,
no qual Agostinho relata a perda de um amigo seu. Lê-se aí: “minha alma já não
podia passar sem ele”. Era um relacionamento de interesse e não uma relação de
alma para alma.
O equívoco do egoísta é depositar no corruptível os
anseios de eternidade. Fundamentada pelo egoísmo a amizade tende a ruir, se não
for alimentada pela atenção do amigo e, outrossim, se tal amigo não lhe for
como uma coisa sua, domesticada. Agostinho confessa ter atraído
esse amigo às suas vacilantes convicções maniqueístas em detrimento da fé
cristã que ele professara quando adolescente, a tal ponto que chega mesmo a
ridicularizar o batismo recebido pelo amigo em perigo de morte[11].
Verdade é que esse amigo, após uma recaída em febre, vem a óbito,
deixando em Agostinho questões mal resolvidas e desencadeando-lhe uma profunda
crise existencial. Tudo o que via era morte, diz Agostinho, tinha perdido minha
alegria[12].
Tudo tornou-se-lhe fastidioso. Caíra em desespero, aqui entendido como o amor
de si mesmo em sua forma extrema e absoluta[13],
com a ausência do amigo, no entanto confessa que não seria capaz de morrer por
ele, denunciando assim o egoísmo ao mesmo tempo que revelando não se tratar de
verdadeira amizade o relacionamento de interesse que tivera com esse amigo.
4 – A Verdadeira Amizade
A caridade permeia
toda a relação pela ação do Espírito Santo, quando o fundamento da amizade é
Deus. Nisto consiste a amizade verdadeira, porque somente a caridade não é
possessiva, sendo sua genuína característica sempre buscar o bem do outro, e
não há maior bem do que a própria caridade. Todos os outros bens estão nela
contidos[14].
Somente após ter alcançado o conhecimento de Deus[15] é
que Agostinho pode vislumbrar a possibilidade de uma verdadeira amizade: amar
os amigos em Deus. Com isso, o bispo de Hipona chega às origens do cristianismo
e emerge daí com a convicção de que só é possível uma verdadeira amizade quando
alicerçada por uma caridade contemplativa. Se é importante ao homem ter amigos,
sumamente importante, faz-se alicerçar a amizade num amor contemplativo. Este
torna possível aquele. “O amor dos homens em Deus só sabe crescer em
profundidade: ele mergulha cada vez mais em Deus e por isso alarga sua
capacidade de amar os homens”[16].
Os amigos verdadeiros, Agostinho sempre os nomeia e
dois nomes saltam-se-lhe dos lábios com mais freqüência nas Confissões, não em
detrimento dos outros, são eles Alípio e Nebrídio, cuja amizade era sustentada
por aquela caridade contemplativa, que não é interesseira[17].
Entretanto, em relação à sua mãe, Mônica, apesar de cantar-lhe com louvor as
virtudes, chegando às raias da veneração Agostinho não amara sua mãe com o amor
contemplativo, não chegara à verdadeira amizade. Nutria por ela profunda
afeição, todavia essa afeição transformara-se em hábito o que redundou em
profundo sofrimento interior quando Mônica veio a óbito[18].
Amando os amigos em Deus nada se perde, porque Deus
não muda[19].
Agostinho canta, com transbordamento lírico, a morte de seus amigos
verdadeiros, confiando na misericordiosa caridade divina, que acolhe todos os
homens[20].
Já não há desespero pela perda, mas sim uma salutar nostalgia que torna
possível fazer com freqüência memória[21] dos
amigos já falecidos. Ademais, há a feliz consciência de que a morte não é
detentora da última palavra no que tange à vida[22].
Considerações
Os amigos verdadeiros são tesouros de inestimável
valor, porque tornam ao homem capaz de encarar e aceitar sua real condição: a
fragilidade humana. A fragilidade desempenha importante papel na vida humana. É
por causa dela que os homens precisam de amigos. “Não somos fracos nos mesmos
pontos” assim, cada um supre e completa o outro, compensando mutuamente as
carências e deficiências, a fragilidade. Um exemplo luminoso disto, nas
Confissões, é Cassicíaco. Cassicíaco fora sim um cenóbio de estudos e
discussões filosóficas, mas acima disto fora um cenóbio de vida fraterna, um
cenóbio de amigos envolvidos por uma mesma caridade, a Caridade que vem de
Deus, que leva a Deus, que é o próprio Deus.
Referências
AGOSTINHO, Santo. Confissões.
2ªed. Trad. J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina. Petrópolis, RJ: Vozes,
2009.
MERTON, Thomas. Novas
Sementes de Contemplação. Rio de Janeiro: Fisus, 1999.
_____. Homem Algum é uma
Ilha. Trad. Dom Timóteo Amoroso Anastácio. Campinas: Verus, 2003.
PAPINI, Giovanni. A vida
de Santo Agostinho. 3ªed. Trad. Godofredo Rangel. São Paulo: Companhia
Editora Nacional.
REALE, Giovanni; ANTISERI,
Dario. História da filosofia, vol. 4. Petrópolis:
Vozes, 2006.
[1] Gn
2,18.
[2] AGOSTINHO,
Santo. Confissões. 2ªed. Trad. J. Oliveira Santos e A.
Ambrósio de Pina. Petrópolis: Vozes, 2009. Livro II, cap. 3, p. 47.
[3] Aristóteles
aborda o tema Amizade em sua obra Ética a Nicômaco.
[4] AGOSTINHO,
Santo. Confissões. Livro IV, cap. 4, p. 79.
[5] AGOSTINHO,
Santo. Confissões. Livro II, cap. 1, p. 45.
[6] PAPINI,
Giovanni. A vida de Santo Agostinho. 3. ed. Trad. Godofredo Rangel.
São Paulo: Companhia Editora Nacional. Cap. 5, p. 33.
[7] PAPINI,
Giovanni. A vida de Santo Agostinho. Cap. 5, p. 268. “Amare et
amari dulce mihi erat magis, si et amantis corpore fruer. Venam igitur amicitae
coinquinabam sordibus concupiscentiae condiremque eius obnubilabam de tartaro
libidinis… Rui etiam in amorem, quo cupiebam capi”.
[8] AGOSTINHO,
Santo. Confissões. Livro II, cap. 9, p. 55.
[9] AGOSTINHO,
Santo. Confissões. Livro II, cap. 4, p. 50.
[10] AGOSTINHO,
Santo. Confissões. Livro II, cap. 9, p. 55.
[11] AGOSTINHO,
Santo. Confissões. Livro IV, cap. 5, p. 80.
[12] AGOSTINHO,
Santo. Confissões. Livro IV, cap. 5, p. 80.
[13] MERTON,
Thomas. Novas Sementes de Contemplação. Rio de Janeiro: Fisus,
1999. cap. 25, p. 177.
[14] 1Jo
4, 16
[15] O
Deus cristão:eterno, imutável, incorruptível, inviolável, uno (Pai, Filho e
Espírito Santo).
[16] MERTON,
Thomas. Homem Algum é uma Ilha. Trad. Dom Timóteo Amoroso
Anastácio. Campinas: Verus, 2003. cap. 9, p. 150.
[17]AGOSTINHO,
Santo. Confissões. Livro VI, cap. 16, p. 138.
[18]AGOSTINHO,
Santo. Confissões. Livro IX, cap. 12, p. 211.
[19] AGOSTINHO,
Santo. Confissões. Livro IV, cap. 9, p. 84.
[20] AGOSTINHO,
Santo. Confissões. Livro IX, cap. 3, p. 192.
[21] Fazer
memória aqui quer significar trazer novamente à lembrança.
[22] AGOSTINHO,
Santo. Confissões. Livro IV, cap. 9, p. 84.
https://pensamentoextemporaneo.com.br/?p=1093
Nenhum comentário:
Postar um comentário