quarta-feira, 20 de julho de 2022

A VERDADEIRA AMIZADE EM SANTO AGOSTINHO

 

A verdadeira amizade em Santo Agostinho

Sidney de Paula Mendes

Não é bom que o homem esteja só.[1]

Aurélio Agostinho, um númida, um africano do norte, filosofando na maturidade de sua fé cristã, toma a decisão de confessar-se a todo gênero humano[2] e ousa discorrer sobre um tema já minuciosamente destrinçado em filosofia por aquela que talvez tenha sido a mente filosófica mais universal dos gregos, a saber, Aristóteles[3]. Agostinho discorre sobre a amizade. Entretanto, diferentemente do estagirita, algo genuinamente novo orientou a reflexão de Agostinho: a concepção cristã de Deus. Nessa linha de pensamento, o bispo de Hipona afirma que só é verdadeira amizade aquela fundamentada em Deus e cuja união se dá na caridade que é fruto do Espírito Santo[4].

Antes, porém, de conceber este conceito luminoso de amizade, Agostinho confessa ter percorrido os tortuosos caminhos da amizade corrompida, do consórcio e da amizade fundamentada na satisfação do prazer e interesses próprios. Na releitura que fizera de sua vida, o bispo de Hipona pode ver o que de fato não fora amizade e, com o auxilio do Cristianismo, pode conceber e cultivar verdadeiras amizades.

1 – Amizade Corrompida

Agostinho relata, nas suas Confissões, ter vivenciado, na aurora de sua adolescência, a amizade ao nível da paixão corporal, ao que ele próprio chamou torpezas e corrupções carnais de sua alma. Agostinho reconhece que o tufão da puberdade foi nele de uma violência sem precedentes, a tal ponto que fê-lo buscar satisfação em prazeres infernais, ousando até entregar-se a tenebrosos amores.

Giovanni Papini viu nas palavras de Agostinho a autodenúncia de práticas homossexuais. De fato vêmo-lo relatar, com horror de si mesmo, que nas relações de alma para alma não se continha em moderação “conforme o limite luminoso da amizade”[5].

Por que carregaria tanto nas palavras? “Não se trataria de amizade caso se referisse a mulheres públicas ou honestas, quando Agostinho alude a seus amigos pensa sempre em homens, e não havia a moda, em seu tempo, de dar-se a uma amante o nome de amiga. Talvez não fosse fácil, na pequena Tagaste, a um moço muito novo, pobre e inexperiente, freqüentar casas de mulheres, ao passo que não lhe era vedado entreter com rapazes de sua mesma idade relações intimas que não despertavam suspeitas”[6].

Ademais, a autodenúncia é mais explicita no que vai relatado ao início do Livro III. Aí o termo também (etiam)[7] é revelador. Agostinho o usa em alusão à concubina com quem vivera quinze anos e com quem tivera um filho. As amizades manchadas com torpe concupiscência de que fala o bispo de Hipona eram, portanto, amizades masculinas.

2 – O Consórcio

Agostinho realça a distinção dos termos amizade e consórcio, no que tange ao relacionamento entre pessoas; para ele, o consórcio implica cumplicidade “que nada vale”[8], ao mesmo tempo que uma pressão psicológica que desrespeita o verdadeiro ser do outro, travando o crescimento e a conseqüente expansão de sua individualidade. Assim, no consórcio, o homem age ora fundamentado no desejo de ser louvado pelos parceiros, ora por medo de proceder diferente, ora pelo prazer de saber que está cometendo algo ilícito.

Na análise que faz do consórcio no roubo das pêras[9], o bispo vê o poder de influência do grupo sobre sua pessoa e realça a negatividade dessa influência quando confessa que sozinho não praticaria tal ação[10]. O consórcio é um aguçador dos vícios em detrimento das virtudes, um indutor ao pecado. Vê-se aí que ele distancia originariamente da amizade.

3 – A Amizade Fundamentada no Egoísmo

O termo egoísmo, forjado no século XVIII para significar a atitude de quem dá predominante importância a si mesmo ou aos seus próprios juízos, sentimentos ou necessidades, e pouco ou nada se preocupa com os outros é um auxilio para a compreensão do cap. 4 do Livro IV das Confissões, no qual Agostinho relata a perda de um amigo seu. Lê-se aí: “minha alma já não podia passar sem ele”. Era um relacionamento de interesse e não uma relação de alma para alma.

O equívoco do egoísta é depositar no corruptível os anseios de eternidade. Fundamentada pelo egoísmo a amizade tende a ruir, se não for alimentada pela atenção do amigo e, outrossim, se tal amigo não lhe for como uma coisa sua, domesticada. Agostinho confessa ter atraído esse amigo às suas vacilantes convicções maniqueístas em detrimento da fé cristã que ele professara quando adolescente, a tal ponto que chega mesmo a ridicularizar o batismo recebido pelo amigo em perigo de morte[11]. Verdade é que esse amigo, após uma recaída em febre, vem a óbito, deixando em Agostinho questões mal resolvidas e desencadeando-lhe uma profunda crise existencial. Tudo o que via era morte, diz Agostinho, tinha perdido minha alegria[12]. Tudo tornou-se-lhe fastidioso. Caíra em desespero, aqui entendido como o amor de si mesmo em sua forma extrema e absoluta[13], com a ausência do amigo, no entanto confessa que não seria capaz de morrer por ele, denunciando assim o egoísmo ao mesmo tempo que revelando não se tratar de verdadeira amizade o relacionamento de interesse que tivera com esse amigo.

4 – A Verdadeira Amizade

A caridade permeia toda a relação pela ação do Espírito Santo, quando o fundamento da amizade é Deus. Nisto consiste a amizade verdadeira, porque somente a caridade não é possessiva, sendo sua genuína característica sempre buscar o bem do outro, e não há maior bem do que a própria caridade. Todos os outros bens estão nela contidos[14].

Somente após ter alcançado o conhecimento de Deus[15] é que Agostinho pode vislumbrar a possibilidade de uma verdadeira amizade: amar os amigos em Deus. Com isso, o bispo de Hipona chega às origens do cristianismo e emerge daí com a convicção de que só é possível uma verdadeira amizade quando alicerçada por uma caridade contemplativa. Se é importante ao homem ter amigos, sumamente importante, faz-se alicerçar a amizade num amor contemplativo. Este torna possível aquele. “O amor dos homens em Deus só sabe crescer em profundidade: ele mergulha cada vez mais em Deus e por isso alarga sua capacidade de amar os homens”[16].

Os amigos verdadeiros, Agostinho sempre os nomeia e dois nomes saltam-se-lhe dos lábios com mais freqüência nas Confissões, não em detrimento dos outros, são eles Alípio e Nebrídio, cuja amizade era sustentada por aquela caridade contemplativa, que não é interesseira[17]. Entretanto, em relação à sua mãe, Mônica, apesar de cantar-lhe com louvor as virtudes, chegando às raias da veneração Agostinho não amara sua mãe com o amor contemplativo, não chegara à verdadeira amizade. Nutria por ela profunda afeição, todavia essa afeição transformara-se em hábito o que redundou em profundo sofrimento interior quando Mônica veio a óbito[18].

Amando os amigos em Deus nada se perde, porque Deus não muda[19]. Agostinho canta, com transbordamento lírico, a morte de seus amigos verdadeiros, confiando na misericordiosa caridade divina, que acolhe todos os homens[20]. Já não há desespero pela perda, mas sim uma salutar nostalgia que torna possível fazer com freqüência memória[21] dos amigos já falecidos. Ademais, há a feliz consciência de que a morte não é detentora da última palavra no que tange à vida[22].

Considerações

Os amigos verdadeiros são tesouros de inestimável valor, porque tornam ao homem capaz de encarar e aceitar sua real condição: a fragilidade humana. A fragilidade desempenha importante papel na vida humana. É por causa dela que os homens precisam de amigos. “Não somos fracos nos mesmos pontos” assim, cada um supre e completa o outro, compensando mutuamente as carências e deficiências, a fragilidade. Um exemplo luminoso disto, nas Confissões, é Cassicíaco. Cassicíaco fora sim um cenóbio de estudos e discussões filosóficas, mas acima disto fora um cenóbio de vida fraterna, um cenóbio de amigos envolvidos por uma mesma caridade, a Caridade que vem de Deus, que leva a Deus, que é o próprio Deus.

Referências

AGOSTINHO, Santo. Confissões. 2ªed. Trad. J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.

MERTON, Thomas. Novas Sementes de Contemplação. Rio de Janeiro: Fisus, 1999.

_____. Homem Algum é uma Ilha. Trad. Dom Timóteo Amoroso Anastácio. Campinas: Verus, 2003.

PAPINI, Giovanni. A vida de Santo Agostinho. 3ªed. Trad. Godofredo Rangel. São Paulo: Companhia Editora Nacional.

REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da filosofia, vol. 4Petrópolis: Vozes, 2006.


[1] Gn 2,18.

[2] AGOSTINHO, Santo. Confissões. 2ªed. Trad. J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina. Petrópolis: Vozes, 2009. Livro II, cap. 3, p. 47.

[3] Aristóteles aborda o tema Amizade em sua obra Ética a Nicômaco.

[4] AGOSTINHO, Santo. Confissões.  Livro IV, cap. 4, p. 79.

[5] AGOSTINHO, Santo. Confissões.  Livro II, cap. 1, p. 45.

[6] PAPINI, Giovanni. A vida de Santo Agostinho. 3. ed. Trad. Godofredo Rangel. São Paulo: Companhia Editora Nacional. Cap. 5, p. 33.

[7] PAPINI, Giovanni. A vida de Santo Agostinho. Cap. 5, p. 268. “Amare et amari dulce mihi erat magis, si et amantis corpore fruer. Venam igitur amicitae coinquinabam sordibus concupiscentiae condiremque eius obnubilabam de tartaro libidinis… Rui etiam in amorem, quo cupiebam capi”.

[8] AGOSTINHO, Santo. Confissões.  Livro II, cap. 9, p. 55.

[9] AGOSTINHO, Santo. Confissões.  Livro II, cap. 4, p. 50.

[10] AGOSTINHO, Santo. Confissões.  Livro II, cap. 9, p. 55.

[11] AGOSTINHO, Santo. Confissões.  Livro IV, cap. 5, p. 80.

[12] AGOSTINHO, Santo. Confissões.  Livro IV, cap. 5, p. 80.

[13] MERTON, Thomas. Novas Sementes de Contemplação. Rio de Janeiro: Fisus, 1999. cap. 25, p. 177.

[14] 1Jo 4, 16

[15] O Deus cristão:eterno, imutável, incorruptível, inviolável, uno (Pai, Filho e Espírito Santo).

[16] MERTON, Thomas. Homem Algum é uma Ilha. Trad. Dom Timóteo Amoroso Anastácio. Campinas: Verus, 2003. cap. 9, p. 150.

[17]AGOSTINHO, Santo. Confissões.  Livro VI, cap. 16, p. 138.

[18]AGOSTINHO, Santo. Confissões.  Livro IX, cap. 12, p. 211.

[19] AGOSTINHO, Santo. Confissões.  Livro IV, cap. 9, p. 84.

[20] AGOSTINHO, Santo. Confissões.  Livro IX, cap. 3, p. 192.

[21] Fazer memória aqui quer significar trazer novamente à lembrança.

[22] AGOSTINHO, Santo. Confissões.  Livro IV, cap. 9, p. 84.

 

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