A esperança como perspectiva pastoral para a comunicação
A
pandemia deu visibilidade ao trabalho desenvolvido pela pastoral da comunicação
e à necessidade de tê-la articulada às realidades eclesiais. O comunicador
cristão, pela sua ação, torna-se um mantenedor da esperança, especialmente
diante de cenários de instabilidade.
Introdução
A pandemia da
Covid-19 escancarou as mazelas de sociedades marcadas por chagas as mais
diversas e, em contrapartida, abriu oportunidades para a comunicação
possibilitar a sobrevivência da humanidade em meio ao caos. A pastoral da
comunicação foi – e está sendo – heroica na missão de promover a cultura do
encontro e manter acesa a chama da esperança, especialmente nas estradas
digitais.
O
chamado e esperado “novo normal” só será novo, de fato, se soubermos
ressignificar a prática pastoral à luz da Palavra de Deus, do magistério da
Igreja e do olhar atento às realidades que nos cercam – off-line e on-line.
1. A partir de uma pandemia
Aprendemos, desde
crianças, que de tudo devemos tirar uma lição. Mesmo quando o caminho
percorrido não é o que escolhemos, dali devemos extrair ensinamentos e sair
melhor como humanidade. A pandemia está durando mais tempo do que o esperado e,
talvez, ainda será insuficiente para nos fazer mudar de vida. Não é possível
que tantas vidas perdidas, tantos erros cometidos, não nos façam olhar o mundo
de uma maneira diferente. Em face disso, perguntamos: que lições podemos tirar
da pandemia para a vida e para a comunicação?
O centenário filósofo
francês Edgar Morin recorda que houve muitas pandemias na história, mas a
novidade radical da Covid-19 está no fato de dar origem a uma “megacrise feita
da combinação de crises políticas, econômicas, sociais, ecológicas, nacionais,
planetárias, que se sustentam mutuamente com componentes, interações e
indeterminações múltiplas e interligadas, ou seja, complexas” (MORIN, 2020, p.
21). Das 15 lições elencadas por Morin nessa obra, pelo menos cinco dizem muito
da nossa forma de olhar o mundo enquanto sujeitos eclesiais:
- Sobre
nossa existência: diante do consumismo desenfreado, “a experiência do
isolamento precisa abrir nossos olhos para a existência daqueles que o
suportam na penúria e na pobreza” (idem, p. 23);
- Sobre
nossa condição humana: fomos dominando a criação e, com isso, “nossa
fragilidade estava esquecida; nossa precariedade, ocultada” (idem, p. 23);
- Sobre
nossa civilização: muitos já convivem com essa realidade diariamente, mas,
para uma parcela, “as injunções do isolamento reduziram nossas compras ao
indispensável, mostrando-nos que muita coisa supérflua nos parecia
necessária” (idem, p. 28);
- Sobre
o despertar da solidariedade: mesmo diante de catástrofes, “vimos a lição,
ainda que simbólica, da solidariedade nacional” (idem, p. 28);
- Sobre
a desigualdade: “o isolamento serviu de lente de aumento para as
desigualdades sociais” (idem, p. 29).
Com base nesse
recorte da realidade, podemos recolher alguns elementos que nos ajudarão a
refletir sobre a importância da comunicação e sua perspectiva pastoral.
2. Sede de esperança
Sempre fomos
acostumados a contemplar a sede como privação, como algo negativo e, por vezes,
até como um castigo. Em situações de elevada temperatura, em regiões de duras
secas, não há nada mais reconfortador do que receber um copo de água fresca;
não há nada mais salvador do que saciar a necessidade fisiológica do organismo.
Não é dessa sede, porém, que quero tratar no início deste texto. Chamo a
atenção para a sede de esperança, aquela que deve habitar o mais profundo do
coração humano e nunca pode faltar ao comunicador. A sede que a pandemia também
veio intensificar no coração humano.
O comunicador deve
viver com sede, para sempre ter o desejo de se saciar. Ele deve dizer com o
salmista, no Salmo 62,2: “Ó Deus, tu és o meu Deus, ansiosamente te procuro.
Minha alma tem sede de ti. Por ti desfalece a minha carne, como terra seca e
exausta, sem água”. A imagem da secura do deserto estimula a pensar que sem
Deus não existe a verdadeira vida; que sem Deus não se comunica a verdadeira
vida. Assim como Davi, que deseja uma experiência mais profunda com Deus, quem
se propõe comunicar deve ter esse mesmo ideal. Avançando no referido salmo, no versículo
5, temos a seguinte proclamação: “Sim, vou te bendizer enquanto eu viver e, em
teu nome, levantarei as mãos”. É a alegria daquele que conhece a Deus e o louva
pela vida toda. É o louvor do sedento!
Comunicar é uma
necessidade humana. Por meio de diversos sinais – sons, imagens, textos,
gestos, silêncio e outros mais –, o ser humano delimita seu ser-estar no mundo.
Qual sede deve ter o comunicador? Antes da sede de comunicar, da ânsia de
produzir e transmitir, ele deve ter sede de Deus, sede de rezar, sede de se
formar, sede de servir, sede de saciar, sede da sede.
Sobre
a sede e a fonte que a sacia, reflito um pouco mais no livro Esperançar: a missão do agente
da pastoral da comunicação, publicado pela Editora Paulus na
coleção Ecclesia Digitalis. Ali, discorro sobre minha experiência pessoal com a
leitura e as pregações do cardeal José Tolentino Mendonça, arquivista e
bibliotecário da Santa Sé, em O
elogio da sede. O cardeal madeirense afirma que a fé não resolve
nossa sede, mas dilata nosso desejo de Deus, para intensificar nossa busca
(TOLENTINO, 2018). A sede é plena de esperança. Já que “a esperança não
decepciona” (Rm 5,5), ela pode dar sentido à sede. Só a esperança pode dar
sentido à sede e nos inserir na dinâmica própria do Espírito!
3. Não há comunicação real sem a presença do Espírito
Muitas
pessoas e grupos começam suas atividades eclesiais no fazer. Na cultura
popular, encontramos o ditado que diz que a necessidade faz o sapo pular. De
fato, a pandemia fez diversas comunidades eclesiais sentir a necessidade da
pastoral da comunicação. Grande número de pessoas, até de maneira improvisada,
começou a fazer transmissões de missas, criar posts para as mídias sociais e se envolver nas
circunstâncias impostas pela pandemia. Que proveito, porém, podemos extrair
dessa situação? Não podemos ficar eternamente no improviso e no amadorismo e
absortos na lógica do fazer. É aqui que surge um alerta!
Na
pressa do fazer e na ânsia de produzir, há o risco de negligenciar a dimensão
espiritual, ainda mais necessária aos nossos dias. As atuais Diretrizes Gerais da Ação
Evangelizadora da Igreja no Brasil sustentam que é preciso
superar a ideia de que o fazer já é uma forma de oração. Esse é um desafio a
ser vencido por todas as pastorais e movimentos, mas mais particularmente pela
pastoral da comunicação, ante os perigos do encantamento com a técnica, com as
plataformas e com as múltiplas possibilidades oferecidas pela comunicação
digital. Esse fascínio pode levar facilmente à tentação do ativismo. O
problema, apontam as Diretrizes,
é que “os agentes de pastoral correm o risco de se esquecer da dignidade
batismal, como verdadeiros sujeitos eclesiais, reduzindo-se a meros
voluntários” (CNBB, 2019, p. 55).
É
sempre necessário recordar que somos discípulos-missionários, não apenas
operadores de máquinas. Para operar um equipamento, tirar uma foto, fazer
uma live, escrever um
texto… enfim, para realizar qualquer atividade comunicativa, é preciso estar
imbuído do Espírito, a fim de que a ação leve a um testemunho. O Diretório de Comunicação da Igreja no Brasil afirma
que “o anúncio sempre deve ser acompanhado pelo testemunho” (CNBB, 2014, p.
161). Ora, o testemunho que o comunicador deve oferecer à sua comunidade parte
de um encontro pessoal com a Pessoa de Jesus Cristo, encontro renovado
diariamente no exercício de seu ministério.
Não é à toa que a
espiritualidade é um dos eixos da pastoral da comunicação. Ela dá sentido aos
demais (formação, produção e articulação), constitui o alicerce (CNBB, 2014, p.
164). Para viver a espiritualidade, é preciso ter sede. O agente da pastoral da
comunicação deve ter a consciência da necessidade de intimidade com Deus, de um
encontro pessoal com o Criador, para criar raízes “na verdadeira e inesgotável
fonte de onde emana o sentido profundo dessa mensagem comunicativa”. A
comunicação, portanto, torna-se experiência de graça, porque “o ser humano tem
a possibilidade de fazer certa experiência do Absoluto que o transcende” (CNBB,
2014, p. 45)
4. “Quem comunica se faz próximo”
Um dos grandes
desafios impostos pela pandemia foi o isolamento social. Especialmente aqui no
Brasil, com uma cultura marcada por abraços e apertos de mão, por aglomerações
tão naturais nos encontros familiares, nas festas, nas igrejas. O isolamento, à
primeira vista, é o calcanhar de aquiles da proximidade. Será que, depois desse
tempo de privação, olharemos para o conceito de proximidade da mesma forma?
Nossas comunidades físicas, com a presença corpórea das pessoas, terão a mesma
dinâmica pastoral? Nossa comunidade presencial terá a mesma intensidade que a
overdose de eventos e celebrações realizados de forma digital?
Na mensagem para o
48º Dia Mundial das Comunicações Sociais, em 2014 – a primeira escrita por
Francisco no seu pontificado, visto que a anterior fora elaborada pelo papa
emérito Bento XVI –, já lançava luzes para encarar essa realidade: “como se
manifesta a ‘proximidade’ no uso dos meios de comunicação e no novo ambiente
criado pelas tecnologias digitais?” (PAPA FRANCISCO, 2014).
Sempre
que releio tal mensagem, essa pergunta me provoca e me desloca. Primeiramente,
pela perspectiva que Francisco lança, com base na parábola do samaritano, para
uma comunicação eficaz ao nosso tempo: “Quem comunica se faz próximo”. Ainda
gastaremos muitos caracteres e muitas lives para
compreender a profundidade dessa simples frase. Em segundo lugar, pela inversão
da lógica, proposta por Jesus e evocada por Francisco: “Não se trata de
reconhecer o outro como um meu semelhante, mas da minha capacidade para me
fazer semelhante ao outro”.
Chamo a atenção para
o desafio da proximidade em tempos digitais, quando corremos o risco de nos
tornarmos máquinas por trás de máquinas. Cabe compreender que a proximidade
deve ter lugar mesmo quando a distância geográfica é evidente. Na Palavra de
Deus, fonte da comunicação e do comunicador, constatamos que as comunidades
cristãs conseguiam viver a proximidade. Não obstante a distância geográfica,
elas não estavam isoladas. Darlei Zanon aponta alguns laços que contribuem para
manter as comunidades ligadas: “evangelização, solidariedade, formação,
trabalho, ajuda etc.” (ZANON, 2018, p. 83).
A fim de compreender
melhor o hoje e o amanhã, precisamos ter a ousadia de olhar para o ontem, para
as primeiras comunidades, e encontrar nelas o impulso e o ardor missionário
para viver a proximidade. Além disso, cabe-nos perceber algo muito simples:
elas não contavam com o aparato que possuímos atualmente, mas deixavam-se
possuir pela Palavra.
5. Comunhão e participação para manter a esperança
Talvez
alguns cheguem a este ponto da leitura cansados de ouvir/ler sobre esperança.
Ela deve ter sido uma das palavras positivas mais ditas e escritas durante a
pandemia. Crentes e não crentes usaram-na sem moderação. Ela foi, e continuará
a ser, conforto para os desanimados. No livro de minha autoria indicado neste
artigo, dedico um capítulo aos mantenedores
da esperança. Talvez tenha sido uma forma de homenagear os
homens e mulheres dispostos a viver de esperança. Basta olharmos para uma vela
e encontraremos o sentido. Quem vive sem esperança vai cruzar os braços e
deixar que ela se apague. Já o mantenedor é alguém que está encantado com a
vida, que não vai medir esforços, que fará todo o possível (e o impossível
também) na luta por mantê-la acesa. Vejo os agentes da pastoral da comunicação
como mantenedores da esperança, pois, mesmo quando a chama parece se esvair,
eles estão ali.
Sobre
isso, é oportuno lembrar que a pastoral da comunicação não pode ser reduzida
aos meios de comunicação. Novamente, à luz do Diretório de Comunicação, compreendemos que “ela é um
elemento articulador da vida e das relações comunitárias. Ela favorece o
cultivo do ser humano enquanto pessoa que comunica valores, vivenciados a
partir da Palavra de Deus e da Eucaristia” (CNBB, 2014, p. 161).
O dístico “comunhão e
participação”, eco da 3ª Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e
Caribenho, realizada em Puebla no ano de 1979, apresenta as duas âncoras
presentes no exercício de comunicar. Comunhão, por uma razão não somente
etimológica, mas de natureza, e participação, não apenas por retórica, mas por
necessidade.
Embora tenham se
passado 40 anos da Conferência de Puebla, ainda seguimos buscando comunhão e
participação – em outros meios, mas rumo ao mesmo fim. Neste tempo
hiperconectado, é preciso tomar consciência dos riscos de fazer uma comunicação
para privilegiados, apenas para os que têm acesso às tecnologias, e considerar
que se esteja comunicando de maneira democrática. Ledo engano! O papa Francisco
continuamente nos chama a atenção para a realidade das periferias, não apenas
geográficas, mas também existenciais. Pode ser que haja muitas delas (quase
invisíveis como o vírus) no território de sua comunidade eclesial. A
comunicação é poderoso instrumento para gerar comunhão e garantir a
participação de todos nos meios e processos.
6. Pistas para uma pastoral da proximidade e da esperança
Diante da reflexão
apresentada, proponho algumas pistas para a vivência da pastoral da
comunicação.
- Buscar intimidade com a Palavra de Deus. Com base na consciência do
discipulado e da missão, o comunicador cristão deverá ser um mistagogo,
deixando-se renovar continuamente pelo Espírito em busca da verdadeira
intimidade com Deus. Há que ter cuidado para não ser algo puramente
intimista, fugindo da dimensão comunitária, ou algo superficial. A
intimidade alimenta-se no encontro contínuo com a Palavra e com a
Eucaristia.
- Reencantar-se pela escuta e pelo outro. Atualmente, a dimensão mais
perdida (e, ao mesmo tempo, mais essencial) da comunicação é a escuta. Buscamos
constantemente aperfeiçoar a fala, em detrimento da escuta. Com isso, o
outro vai sendo apequenado e reduzido a mais um. Na pastoral vivida no
ambiente digital, também é preciso abrir-se à realidade da escuta. Mais do
que oferecer respostas prontas aos algoritmos, é preciso oferecer ouvidos
atentos, capazes de discernir os verdadeiros anseios das pessoas.
- Ter consciência de ser uma pastoral transversal. À medida que os eixos da
pastoral da comunicação (formação, articulação, produção e espiritualidade)
são vividos de maneira harmônica, dão sustentação às demais ações da
comunidade, paróquia ou diocese. Perceber a integração e interligação dos
eixos ajuda a promover uma pastoral mais fortalecida e também colabora, de
maneira mais efetiva, para a pastoral orgânica, mediante a característica
da transversalidade. Essa característica deve ser muito bem assimilada
pelos agentes, pois a pastoral da comunicação não encerra em si suas
atividades; ela é a pastoral do serviço, existe para as demais atividades
evangelizadoras.
- Valorizar gestos de solidariedade e partilha. O agente da pastoral da
comunicação, no ato de esperançar, deve ser um alimentador de gestos de
solidariedade e partilha existentes em sua realidade eclesial. Para tanto,
deve apoiar ações caritativas promovidas pelas pastorais sociais,
conferindo ampla visibilidade ao exercício do Evangelho.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL (CNBB). Diretório de Comunicação da
Igreja no Brasil. Brasília: CNBB, 2014.
______. Diretrizes
Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil: 2019-2023. Brasília:
CNBB, 2019.
MENDONÇA, José Tolentino. Elogio da sede. São Paulo: Paulinas, 2018.
MORIN, Edgar. É
hora de mudarmos de via: lições do coronavírus. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2020.
PAPA FRANCISCO. Mensagem
para o 48º Dia Mundial das Comunicações Sociais, 1 jun. 2014.
Disponível em:
<http://www.vatican.va/content/francesco/pt/messages/communications/documents/papa-francesco_20140124_messaggio-comunicazioni-sociali.html>.
Acesso em: 17 jan. 2021.
ZANON, Darlei. Igreja
e sociedade em rede: impactos para uma cibereclesiologia. São
Paulo: Paulus, 2018.
Marcus Tullius*
é licenciado em
Filosofia, bacharel em Comunicação Social com habilitação em Publicidade e Propaganda,
pós-graduando em Influência Digital: Conteúdo e Estratégia. Coordenador geral
da Pascom Brasil, membro do Grupo de Reflexão em Comunicação da CNBB e
coordenador de conteúdos da TV Pai Eterno.
E-mail: soumarcustullius@gmail.com
https://www.vidapastoral.com.br/edicao/a-esperanca-como-perspectiva-pastoral-para-a-comunicacao/
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