sábado, 22 de outubro de 2022

"CASAMENTO, NOIVADO, NAMORO OU APENAS FLERTE? A LINHA LIMÍTROFE ENTRE POLÍTICA E RELIGIÃO"

 

"CASAMENTO, NOIVADO, NAMORO OU APENAS FLERTE? A LINHA LIMÍTROFE ENTRE POLÍTICA E RELIGIÃO"

 

Por Lindolivo Soares Moura

    "Se tomaste  partido  pela justiça,  não esqueças que a justiça está  acima  do  teu partido"    (desconhecido).

 

"Nós temos que ser muito sinceros... Momentos especificamente religiosos não podem ser usados por ministros da Igreja para fazer apologia de suas opções partidárias e demais assuntos relacionados às eleições". Talvez você tenha ficado confuso ao se deparar com o conteúdo da presente declaração. Sobretudo se tomou conhecimento da Nota recém-vinda a público assinada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, CNBB, órgão considerado o principal representante da Igreja Católica no país. Sim, você não está equivocado: joguei intencionalmente com as palavras alterando - invertendo, para ser mais exato - o lugar dos personagens na trama. Mas apenas e tão somente para trazer à baila a seguinte questão: sabendo que o Estado brasileiro é "constitucionalmente" laico, e que a Religião que se auto-denomina "Católica", isto é, universal, sempre se definiu como "a-partidária" em termos políticos, não lhe parece fazer sentido a declaração homóloga à nota da CNBB que ora estamos propondo para análise e consideração?

Se sim, ou se ao menos parcialmente, caberia então uma segunda pergunta: por quais razões a mesma CNBB não aproveitou a ocasião e a oportunidade para convocar também seus legítimos representantes -  presbíteros, diáconos e outros ministros -  e os instou a realizar semelhante movimento de revisão e adequação de seus discursos e falas proferidos nos púlpitos, altares, liturgias e celebrações? O fato de que certo número de "Pastores" - Bispos, Arcebispos e Cardeais, dentre outros - venham incorrendo no mesmo deslize, a teria deixado desconfortável e pouco à vontade para tomar essa decisão?

Que as Instituições Religiosas, na pessoa e na função de seus legítimos pastores, ministros e representantes, tenham responsabilidades específicas para com o chamado "mundo da política", só não admite ou não é capaz de percebê-lo quem desconhece o real significado desse termo, ou quem, conhecendo, prefere ignorar o que conhece. A palavra "política", de fato, não é "propriedade privada" da esfera dita "partidária", como de resto não o é de nenhuma outra em particular. Quando Aristóteles afirma, por exemplo, que o ser humano é por natureza e essência um "animal político", quer com isso ressaltar não somente o inatismo de suas imperfeições, limitações e incompletude, mas também, em consequência disso, sua necessidade e seu movimento em direção à vida comunitária ou societária a fim de que todos possam se socorrer e se completar mutuamente. A partir do momento em que as comunidades e sociedades humanas começaram a se organizar melhor, e se estabelecer nas chamadas "pólis" ou "poleis", português e grego respectivamente,  passou-se a denominar "política" à nobre e difícil arte da vida em comum.

Como em princípio as discussões e soluções ocorriam com a participação "direta" da comunidade ou povo - "demo", em grego - passou-se a denominar "democracia" tal forma de governo ou gestão, ainda que apenas uma pequena minoria participasse efetivamente do processo da tomada de decisões. Partidos, partidários e partidarismos foram se tornando construções posteriores. Aliás, em se tratando do "número", e de Brasil, o que entre nós ocorre é uma verdadeira aberração, não da natureza certamente, mas da malandragem e da esperteza associadas ao oportunismo e sobretudo ao clássico e suspeito "jeitinho brasileiro". O certo porém é que em seu sentido mais originário fazer ou participar da "política" tinha o significado de estar envolvido com a "coisa" - "res" em latim - pública, de onde surgiria mais tarde o termo "república". Não se pode esquecer também que o chamado "bem-comum" vigorava de fato naqueles tempos, sem ter cedido ainda espaço e muito menos lugar ao "cabideirismo" e aos interesses particulares, pessoais e geracionais da politicagem.

Colocando em melhor ordem o raciocínio: a Igreja - no presente caso a Igreja "Católica" - tem sem dúvida direito e até dever de condenar pública e abertamente partidos e candidatos tanto de direita como de esquerda, de cima como de baixo, centrinhos e centrões, quando estes extrapolam a tênue fronteira que deveria ser minimamente respeitada entre política - no sentido "partidário" do termo - e religião - enquanto Instituição organizada. O problema é que historicamente essa linha limítrofe nunca foi de fato clara e devidamente respeitada. Bem ao contrário, o chamado "poder secular" viveu por longo tempo uma verdadeira "lua de mel" com o poder espiritual ou religioso. Parecia claramente ser do interesse de ambos que assim fosse, e essa espécie de "conluio" produziu não poucos frutos e consequências de memória nada feliz.

Mas, da mesma forma que na maioria dos casamentos a lua de mel acaba chegando ao fim - não raro se transformando em "gotas de fel", parafraseando poema da Prêmio Nobel chilena Gabriela Mistral - mais cedo ou mais tarde a crise acabaria por se abater também sobre essa indesejável, recorrente, e não raro "promíscua" modalidade de união. Hoje, em se tratando de Brasil, é possível que política e religião organizada vivam ainda uma espécie de noivado em certas regiões, namoro em outras, pequenos flertes naquelas mais recatadas, podendo subsistir ainda, aqui ou ali, cá ou acolá, uma ou outra em que "se pratique o celibato". Assim como pode haver, claro, "casamentos ocultos", "famílias estendidas", "segundas e terceiras uniões", e sabe-se lá Deus que tipos outros de configurações. Mas o que seria justo esperar - uma "estável separação" e não uma "união estável", entre política e religião - em tempos de eleições se desestabiliza - não raro se degringola - e aquela antiga aproximação, com seus flertes jamais de todo evitados, volta a ser tão explícita e despudorada - por iniciativa de ambas as partes, diga-se de passagem - que acaba demandando advertência e intervenção.Tudo com o objetivo de manter os ânimos mais contidos e os sentidos menos excitados. A nota-declaração da CNBB parece ser, malgrado a ambiguidade decorrente da postura (não)adotada, uma flecha atirada nessa direção.

 

Sabe-se, de acordo com as Escrituras consideradas sagradas, que o líder mais carismático do Cristianismo, cujo nome de tão conhecido dispensa apresentação, foi não poucas vezes interpelado e instado a se posicionar sobre esse limite ou essa linha fronteiriça entre os poderes denominados "seculares" e a ordem dita "espiritual". Arapucas, verdadeiros alçapões lhe teriam sido estratégica e insidiosamente colocados com o intuito de colhê-lo em contradição. A mais hábil e emblemática de suas respostas parece ter sido a conhecida e homileticamente repetida afirmação: "a César o que é de César, a Deus o que é de Deus!". Se o imposto é devido, pague-se, diria, se não é, omita-se ou rebele-se; se permanece a dúvida, que se busque o quanto antes dirimir a questão. Isso não é fuga, escape, e menos ainda recusa em assumir posição; isso é "política" no sentido mais genuíno e autêntico do termo. Haveria razões sérias  para se duvidar da legitimidade dessa interpretação?

Alguns talvez dirão que a resposta dada nada tem de ingênuo, que não se trata apenas de uma simples idéia mas sim de uma verdadeira "ideologia!". Tanto assim que foi com a acusação de estar instigando o povo a não pagar tal tributo que o acusado foi apresentado diante de quem tinha poder para julgá-lo, exigindo-se sua condenação. Uma resposta de natureza ideológica, portanto? "claro, por que não"!? A rigor não existem idéias "puras", isoladas, lançadas ao vento e pairando no ar feito almas penadas, desconectadas de um contexto e fruto de uma "concepção imaculada". O cerne da questão não nos parece ser bem esse. Aliás tal raciocínio parece-nos por demais capcioso, ardiloso, para não dizer "maldoso", como maldosas eram as intenções por trás das arapucas e dos alçapões. Todo discurso, fala ou ideia, são inevitavelmente "ideológicos", quer se queira quer não. Ou seja, não têm como ser neutros ou indiferentes no tocante à sua natureza e à pretensa neutralidade da intenção. A questão que se impõe é saber se a ideologia que o discurso, a ideia ou a fala portam consigo, é de natureza "arbitrária e autoritária", como denunciava Marx, ou "historicamente orgânica", como queria Gramsci. Em ambos os casos estamos com certeza diante de uma ideologia, mas  no segundo deles, observe-se bem, vigora um discurso efetivamente sólido, eficaz, capaz de sustentar, como cimento na massa e  fermento no pão, não só as palavras e as ideias que porta consigo, mas também as escolhas, as decisões, assim como as "lutas" autênticas e genuínas por liberdade, libertação e emancipação.

O discurso político é ideológico? Todos eles o são! O discurso religioso é ideológico? Todos eles! O discurso científico é ideológico? Todos eles! O discurso do senso comum é ideológico? Todos eles! Assim como  ideológicos são os discursos artístico, poético, lúdico, seja ele manifesto ou não. Aliás, haverá expressão mais categórica, incisiva e contundente da natureza ideológica de um discurso, do que aquela que nos chega pela via de uma "greve de silêncio" em prol da emancipação de um povo, assumida de forma livre, voluntária e consciente? "As ideias movem o mundo com seus pezinhos de lã", dizia certo estudioso da História. Essa mesma história que tem demonstrado insistentemente que antes dos canhões passam as ideias, antes das ideias a ideologias. Enfim, todo e qualquer tipo de discurso "é", não têm como "não ser" e menos ainda "deixar de ser" ideológico.  As ideologias não são problemas e menos ainda "o" problema; são sim crenças, ideias, convicções, ferramentas e soluções, e só se transformam em problemas - podendo vir a se tornar o maior deles, naturalmente - quando são arbitrárias, despóticas, autoritárias, tirânicas, dominadoras, manipuladoras, opressoras e tantos outros adjetivos semelhantes mais.

A afirmação pura e simples de que um determinado discurso ou fala são ideológicos, ou, por outro lado, de que determinada escolha ou decisão obedecem critérios "não ideológicos", mas "puramente técnico-científicos", na melhor das hipóteses demonstra desconhecimento, e na presença desse, e na pior delas, vício na intenção. Essa "pureza", divina e angelical, não encontra espaço na humana natureza, e só é passível de ser encontrada numa esfera do além-mundo, transcendente e inacessível aos entes dessa dimensão. Para a ausência da certeza, claro, existe o "benefício da  dúvida", e em persistindo a dúvida, nada há de errado com a esperança.

Retomando o foco de nossa reflexão: há razões e motivos suficientes para o "puxão de orelhas" da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil para com a classe política, notadamente para com os candidatos e respectivos apoiadores envolvidos na eleição ainda em andamento? Ao nosso ver e de acordo com nosso juízo, sem dúvida alguma que sim.  Isso em razão do fato de estarmos presenciando o que poderíamos chamar de uma autêntica "apropriação indébita" do discurso religioso, acompanhado do acometimento de um de seus pecados mais capitais: a invocação  persistente e indecente, beirando o obsceno, "do nome de Deus em vão". Por vezes tem-se  mesmo a impressão de que certos candidatos "incorporam"  tanto e tão bem seus discursos e falas, nesse sentido, que acabamos nos sentindo como que "transportados" para os assentos de uma Igreja, aspergidos por água benta em uma sacristia, ou de joelhos num confessionário esperando pela absolvição. Tais "incorporações" fazem lembrar - e como! - a célebre cena da "transfiguração". E quando tais "atuações" têm lugar, não resta outra alternativa senão fazer uso da exclamação popular: "Só Jesuis!".

Mas se a repreensão é justa, por que a indignação? A presente reflexão não tem, advirta-se, pretensão alguma de ser uma espécie de "ato de desagravo" em nome do político ou do menos sagrado. Mas há sem dúvida algo que "clama aos céus" e reclama por atenção. É difícil não imaginar, por mais otimista e esforço que se faça, que a mesma Conferência Nacional dos Bispos do Brasil desconheça o fato de que um considerável número de Sacerdotes e outros Ministros religiosos venham fazendo dos templos, púlpitos e altares, verdadeiros "palanques", tribunas e até "tribunais", com discursos e falas incontestavelmente "partidárias" em prol dos partidos e candidatos de sua escolha e predileção. Apesar disso, não presenciamos até o momento nenhuma intervenção, reprimenda ou admoestação dirigidas pelos "Pastores" da Igreja ao rebanho que lhe é próprio, semelhantes em contrapartida àquelas direcionadas ao rebanho da seara alheia.

A hipótese já sugerida anteriormente de que quando um significativo número de representantes do assim chamado "Alto Clero", ao incorrer no mesmo tipo de deslize ou desvio em que estão envolvidos representantes do "Baixo Clero", pode acarretar dificuldades para o exercício do múnus de liderança e orientação, sem dúvida não parece poder ser descartada. "Se tomaste partido pela justiça - lembra-nos o pensamento que encabeça a presente reflexão - não esqueças que a justiça está acima do teu partido". Tal conteúdo, assim nos parece, dispensa interpretação. E se a sugestão de um "mea culpa"  direcionada aos que transitam pelo terreno da politica e das eleições, é sem dúvida adequada e oportuna, não seria esse mesmo "mea culpa" justo e igualmente adequado quando simultânea e humildemente feito pela Igreja enquanto Instituição?

Repasso enquanto escrevo, palavras pronunciadas pelo Arcebispo de uma das mais relevantes Arquidioceses desse imenso Brasil. Diz ele em seu "pronunciamento homilético":  "Há a diferença entre buscar a verdade e buscar interesses. É muito diferente a verdade da ideologia. Nós, temos um compromisso ético com a verdade, com a verdade na política. Mas a política caminha muito pelos caminhos ideológicos, que são de grupos e de interesses, às vezes pessoais. Isso é que é importante: distinguir a ideologia da verdade".

Quando se pergunta: que verdade é esta, destituída de ideologias e interesses outros que não o do "sumo bem", que transcende e paira sobre todas as outras verdades e reivindica ser possuidora do critério último, decisivo e decisório de julgamento sobre todas as demais? As palavras finais do pronunciamento em questão não deixam margem para dúvidas e contestações: "Para nós, a verdade é nosso Senhor Jesus Cristo e o Evangelho".

Data venia, se esse discurso e essa fala não são "ideológicos", tanto no teor daquilo que condenam, quanto no conteúdo daquilo que reivindicam, há que se rever o quanto antes o conceito de ideologia. E claro,  no embalo da tarefa aproveitar para rever também o conceito de "verdade". Afinal o termo grego para "verdade" é "aletheia", cujo significado literal é "des-esconder" ou "esconder nada", e um discurso ou uma fala que contrapõem verdade e ideologia, e intencionalmente ou não, se auto-declara possuidor da verdade, e como se isso não bastasse ser também possuidor do critério de verificação de veracidade em relação a todas as demais formas de saberes e discursos, os quais condena como "ideológicos", são no mínimo contraditórios, para não dizer suspeitos, sejam tais discursos e falas de qualquer natureza ou "ideologia", exceção feita, claro, às já mencionadas ideologias arbitrárias e autoritárias.

À guisa de conclusão: Hans Kelsen, criador da chamada "Teoria Pura do Direito", advertia que quando a política entra por uma porta a justiça sai pela outra.Talvez não seja tão bem assim, ou quem sabe, não com tanta pressa. Mas que quando política e religião não só não conseguem identificar e definir com clareza aquilo que a Filosofia da Ciência denomina "enquadramento de tarefa", e acabam ultrapassando os limites fronteiriços que existem justamente como forma de garantir a cada uma delas autonomia, soberania, autodeterminação e emancipação, pode ser sinal de que as respectivas ideologias que lhes servem de suporte estejam também elas ultrapassando a linha limítrofe e tênue que separa ideologias "historicamente orgânicas" daquelas que, em contrapartida, arbitrária e autoritariamente, viajam na contra-mão. Poucos casamentos costumam durar para sempre. Mas mesmo quando a separação parece ser inevitável e até aconselhável, deveríamos poder esperar que as partes separadas consigam se manter estáveis, seguras e resilientes. 

Mas para que isso seja possível é preciso que haja antes de tudo reverência e respeito mútuos. Só então se poderá quem sabe pensar em parceria, sinergia e cooperação. Ultrapassar fronteiras e invadir territórios não parecem ser estratégia adequada que vá nessa direção. As consequências da atual invasão Russa frente a Ucrânia, que estamos vivenciando, são exemplos claros disso. Lamentavelmente política e religião têm com frequência se alternado nessa prática. Em tais casos ninguém ganha, todos perdem. Resta torcer e rezar para que sabedoria e bom senso não tardem em entrar em ação.

 

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