"CASAMENTO,
NOIVADO, NAMORO OU APENAS FLERTE? A LINHA LIMÍTROFE ENTRE POLÍTICA E
RELIGIÃO"
Por Lindolivo
Soares Moura
"Se tomaste partido pela justiça,
não esqueças que a justiça está
acima do teu partido" (desconhecido).
"Nós
temos que ser muito sinceros... Momentos especificamente religiosos não podem
ser usados por ministros da Igreja para fazer apologia de suas opções
partidárias e demais assuntos relacionados às eleições". Talvez você tenha
ficado confuso ao se deparar com o conteúdo da presente declaração. Sobretudo
se tomou conhecimento da Nota recém-vinda a público assinada pela Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil, CNBB, órgão considerado o principal
representante da Igreja Católica no país. Sim, você não está equivocado: joguei
intencionalmente com as palavras alterando - invertendo, para ser mais exato -
o lugar dos personagens na trama. Mas apenas e tão somente para trazer à baila
a seguinte questão: sabendo que o Estado brasileiro é "constitucionalmente"
laico, e que a Religião que se auto-denomina "Católica", isto é,
universal, sempre se definiu como "a-partidária" em termos políticos,
não lhe parece fazer sentido a declaração homóloga à nota da CNBB que ora
estamos propondo para análise e consideração?
Se
sim, ou se ao menos parcialmente, caberia então uma segunda pergunta: por quais
razões a mesma CNBB não aproveitou a ocasião e a oportunidade para convocar
também seus legítimos representantes -
presbíteros, diáconos e outros ministros - e os instou a realizar semelhante movimento de
revisão e adequação de seus discursos e falas proferidos nos púlpitos, altares,
liturgias e celebrações? O fato de que certo número de "Pastores" -
Bispos, Arcebispos e Cardeais, dentre outros - venham incorrendo no mesmo
deslize, a teria deixado desconfortável e pouco à vontade para tomar essa
decisão?
Que
as Instituições Religiosas, na pessoa e na função de seus legítimos pastores,
ministros e representantes, tenham responsabilidades específicas para com o chamado
"mundo da política", só não admite ou não é capaz de percebê-lo quem
desconhece o real significado desse termo, ou quem, conhecendo, prefere ignorar
o que conhece. A palavra "política", de fato, não é "propriedade
privada" da esfera dita "partidária", como de resto não o é de
nenhuma outra em particular. Quando Aristóteles afirma, por exemplo, que o ser
humano é por natureza e essência um "animal político", quer com isso
ressaltar não somente o inatismo de suas imperfeições, limitações e
incompletude, mas também, em consequência disso, sua necessidade e seu
movimento em direção à vida comunitária ou societária a fim de que todos possam
se socorrer e se completar mutuamente. A partir do momento em que as
comunidades e sociedades humanas começaram a se organizar melhor, e se
estabelecer nas chamadas "pólis" ou "poleis", português e
grego respectivamente, passou-se a
denominar "política" à nobre e difícil arte da vida em comum.
Como
em princípio as discussões e soluções ocorriam com a participação "direta"
da comunidade ou povo - "demo", em grego - passou-se a denominar
"democracia" tal forma de governo ou gestão, ainda que apenas uma
pequena minoria participasse efetivamente do processo da tomada de decisões.
Partidos, partidários e partidarismos foram se tornando construções
posteriores. Aliás, em se tratando do "número", e de Brasil, o que
entre nós ocorre é uma verdadeira aberração, não da natureza certamente, mas da
malandragem e da esperteza associadas ao oportunismo e sobretudo ao clássico e
suspeito "jeitinho brasileiro". O certo porém é que em seu sentido
mais originário fazer ou participar da "política" tinha o significado
de estar envolvido com a "coisa" - "res" em latim -
pública, de onde surgiria mais tarde o termo "república". Não se pode
esquecer também que o chamado "bem-comum" vigorava de fato naqueles
tempos, sem ter cedido ainda espaço e muito menos lugar ao
"cabideirismo" e aos interesses particulares, pessoais e geracionais
da politicagem.
Colocando
em melhor ordem o raciocínio: a Igreja - no presente caso a Igreja
"Católica" - tem sem dúvida direito e até dever de condenar pública e
abertamente partidos e candidatos tanto de direita como de esquerda, de cima
como de baixo, centrinhos e centrões, quando estes extrapolam a tênue fronteira
que deveria ser minimamente respeitada entre política - no sentido
"partidário" do termo - e religião - enquanto Instituição organizada.
O problema é que historicamente essa linha limítrofe nunca foi de fato clara e
devidamente respeitada. Bem ao contrário, o chamado "poder secular"
viveu por longo tempo uma verdadeira "lua de mel" com o poder
espiritual ou religioso. Parecia claramente ser do interesse de ambos que assim
fosse, e essa espécie de "conluio" produziu não poucos frutos e
consequências de memória nada feliz.
Mas,
da mesma forma que na maioria dos casamentos a lua de mel acaba chegando ao fim
- não raro se transformando em "gotas de fel", parafraseando poema da
Prêmio Nobel chilena Gabriela Mistral - mais cedo ou mais tarde a crise
acabaria por se abater também sobre essa indesejável, recorrente, e não raro
"promíscua" modalidade de união. Hoje, em se tratando de Brasil, é
possível que política e religião organizada vivam ainda uma espécie de noivado
em certas regiões, namoro em outras, pequenos flertes naquelas mais recatadas,
podendo subsistir ainda, aqui ou ali, cá ou acolá, uma ou outra em que "se
pratique o celibato". Assim como pode haver, claro, "casamentos
ocultos", "famílias estendidas", "segundas e terceiras
uniões", e sabe-se lá Deus que tipos outros de configurações. Mas o que
seria justo esperar - uma "estável separação" e não uma "união
estável", entre política e religião - em tempos de eleições se
desestabiliza - não raro se degringola - e aquela antiga aproximação, com seus
flertes jamais de todo evitados, volta a ser tão explícita e despudorada - por
iniciativa de ambas as partes, diga-se de passagem - que acaba demandando
advertência e intervenção.Tudo com o objetivo de manter os ânimos mais contidos
e os sentidos menos excitados. A nota-declaração da CNBB parece ser, malgrado a
ambiguidade decorrente da postura (não)adotada, uma flecha atirada nessa
direção.
Sabe-se,
de acordo com as Escrituras consideradas sagradas, que o líder mais carismático
do Cristianismo, cujo nome de tão conhecido dispensa apresentação, foi não
poucas vezes interpelado e instado a se posicionar sobre esse limite ou essa
linha fronteiriça entre os poderes denominados "seculares" e a ordem
dita "espiritual". Arapucas, verdadeiros alçapões lhe teriam sido
estratégica e insidiosamente colocados com o intuito de colhê-lo em
contradição. A mais hábil e emblemática de suas respostas parece ter sido a
conhecida e homileticamente repetida afirmação: "a César o que é de César,
a Deus o que é de Deus!". Se o imposto é devido, pague-se, diria, se não
é, omita-se ou rebele-se; se permanece a dúvida, que se busque o quanto antes
dirimir a questão. Isso não é fuga, escape, e menos ainda recusa em assumir
posição; isso é "política" no sentido mais genuíno e autêntico do
termo. Haveria razões sérias para se
duvidar da legitimidade dessa interpretação?
Alguns
talvez dirão que a resposta dada nada tem de ingênuo, que não se trata apenas
de uma simples idéia mas sim de uma verdadeira "ideologia!". Tanto
assim que foi com a acusação de estar instigando o povo a não pagar tal tributo
que o acusado foi apresentado diante de quem tinha poder para julgá-lo,
exigindo-se sua condenação. Uma resposta de natureza ideológica, portanto?
"claro, por que não"!? A rigor não existem idéias "puras",
isoladas, lançadas ao vento e pairando no ar feito almas penadas, desconectadas
de um contexto e fruto de uma "concepção imaculada". O cerne da
questão não nos parece ser bem esse. Aliás tal raciocínio parece-nos por demais
capcioso, ardiloso, para não dizer "maldoso", como maldosas eram as
intenções por trás das arapucas e dos alçapões. Todo discurso, fala ou ideia,
são inevitavelmente "ideológicos", quer se queira quer não. Ou seja,
não têm como ser neutros ou indiferentes no tocante à sua natureza e à pretensa
neutralidade da intenção. A questão que se impõe é saber se a ideologia que o
discurso, a ideia ou a fala portam consigo, é de natureza "arbitrária e
autoritária", como denunciava Marx, ou "historicamente
orgânica", como queria Gramsci. Em ambos os casos estamos com certeza
diante de uma ideologia, mas no segundo
deles, observe-se bem, vigora um discurso efetivamente sólido, eficaz, capaz de
sustentar, como cimento na massa e
fermento no pão, não só as palavras e as ideias que porta consigo, mas
também as escolhas, as decisões, assim como as "lutas" autênticas e
genuínas por liberdade, libertação e emancipação.
O
discurso político é ideológico? Todos eles o são! O discurso religioso é
ideológico? Todos eles! O discurso científico é ideológico? Todos eles! O
discurso do senso comum é ideológico? Todos eles! Assim como ideológicos são os discursos artístico,
poético, lúdico, seja ele manifesto ou não. Aliás, haverá expressão mais
categórica, incisiva e contundente da natureza ideológica de um discurso, do
que aquela que nos chega pela via de uma "greve de silêncio" em prol
da emancipação de um povo, assumida de forma livre, voluntária e consciente?
"As ideias movem o mundo com seus pezinhos de lã", dizia certo
estudioso da História. Essa mesma história que tem demonstrado insistentemente
que antes dos canhões passam as ideias, antes das ideias a ideologias. Enfim,
todo e qualquer tipo de discurso "é", não têm como "não
ser" e menos ainda "deixar de ser" ideológico. As ideologias não são problemas e menos ainda
"o" problema; são sim crenças, ideias, convicções, ferramentas e
soluções, e só se transformam em problemas - podendo vir a se tornar o maior
deles, naturalmente - quando são arbitrárias, despóticas, autoritárias,
tirânicas, dominadoras, manipuladoras, opressoras e tantos outros adjetivos
semelhantes mais.
A
afirmação pura e simples de que um determinado discurso ou fala são
ideológicos, ou, por outro lado, de que determinada escolha ou decisão obedecem
critérios "não ideológicos", mas "puramente
técnico-científicos", na melhor das hipóteses demonstra desconhecimento, e
na presença desse, e na pior delas, vício na intenção. Essa "pureza",
divina e angelical, não encontra espaço na humana natureza, e só é passível de
ser encontrada numa esfera do além-mundo, transcendente e inacessível aos entes
dessa dimensão. Para a ausência da certeza, claro, existe o "benefício
da dúvida", e em persistindo a
dúvida, nada há de errado com a esperança.
Retomando
o foco de nossa reflexão: há razões e motivos suficientes para o "puxão de
orelhas" da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil para com a classe
política, notadamente para com os candidatos e respectivos apoiadores
envolvidos na eleição ainda em andamento? Ao nosso ver e de acordo com nosso
juízo, sem dúvida alguma que sim. Isso
em razão do fato de estarmos presenciando o que poderíamos chamar de uma
autêntica "apropriação indébita" do discurso religioso, acompanhado
do acometimento de um de seus pecados mais capitais: a invocação persistente e indecente, beirando o obsceno,
"do nome de Deus em vão". Por vezes tem-se mesmo a impressão de que certos candidatos
"incorporam" tanto e tão bem
seus discursos e falas, nesse sentido, que acabamos nos sentindo como que
"transportados" para os assentos de uma Igreja, aspergidos por água
benta em uma sacristia, ou de joelhos num confessionário esperando pela
absolvição. Tais "incorporações" fazem lembrar - e como! - a célebre
cena da "transfiguração". E quando tais "atuações" têm
lugar, não resta outra alternativa senão fazer uso da exclamação popular:
"Só Jesuis!".
Mas
se a repreensão é justa, por que a indignação? A presente reflexão não tem,
advirta-se, pretensão alguma de ser uma espécie de "ato de desagravo"
em nome do político ou do menos sagrado. Mas há sem dúvida algo que "clama
aos céus" e reclama por atenção. É difícil não imaginar, por mais otimista
e esforço que se faça, que a mesma Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
desconheça o fato de que um considerável número de Sacerdotes e outros Ministros
religiosos venham fazendo dos templos, púlpitos e altares, verdadeiros
"palanques", tribunas e até "tribunais", com discursos e
falas incontestavelmente "partidárias" em prol dos partidos e
candidatos de sua escolha e predileção. Apesar disso, não presenciamos até o
momento nenhuma intervenção, reprimenda ou admoestação dirigidas pelos
"Pastores" da Igreja ao rebanho que lhe é próprio, semelhantes em
contrapartida àquelas direcionadas ao rebanho da seara alheia.
A
hipótese já sugerida anteriormente de que quando um significativo número de
representantes do assim chamado "Alto Clero", ao incorrer no mesmo
tipo de deslize ou desvio em que estão envolvidos representantes do "Baixo
Clero", pode acarretar dificuldades para o exercício do múnus de liderança
e orientação, sem dúvida não parece poder ser descartada. "Se tomaste
partido pela justiça - lembra-nos o pensamento que encabeça a presente reflexão
- não esqueças que a justiça está acima do teu partido". Tal conteúdo,
assim nos parece, dispensa interpretação. E se a sugestão de um "mea
culpa" direcionada aos que
transitam pelo terreno da politica e das eleições, é sem dúvida adequada e
oportuna, não seria esse mesmo "mea culpa" justo e igualmente
adequado quando simultânea e humildemente feito pela Igreja enquanto
Instituição?
Repasso
enquanto escrevo, palavras pronunciadas pelo Arcebispo de uma das mais
relevantes Arquidioceses desse imenso Brasil. Diz ele em seu
"pronunciamento homilético":
"Há a diferença entre buscar a verdade e buscar interesses. É muito
diferente a verdade da ideologia. Nós, temos um compromisso ético com a
verdade, com a verdade na política. Mas a política caminha muito pelos caminhos
ideológicos, que são de grupos e de interesses, às vezes pessoais. Isso é que é
importante: distinguir a ideologia da verdade".
Quando
se pergunta: que verdade é esta, destituída de ideologias e interesses outros
que não o do "sumo bem", que transcende e paira sobre todas as outras
verdades e reivindica ser possuidora do critério último, decisivo e decisório
de julgamento sobre todas as demais? As palavras finais do pronunciamento em
questão não deixam margem para dúvidas e contestações: "Para nós, a
verdade é nosso Senhor Jesus Cristo e o Evangelho".
Data
venia, se esse discurso e essa fala não são "ideológicos", tanto no
teor daquilo que condenam, quanto no conteúdo daquilo que reivindicam, há que
se rever o quanto antes o conceito de ideologia. E claro, no embalo da tarefa aproveitar para rever
também o conceito de "verdade". Afinal o termo grego para
"verdade" é "aletheia", cujo significado literal é
"des-esconder" ou "esconder nada", e um discurso ou uma
fala que contrapõem verdade e ideologia, e intencionalmente ou não, se
auto-declara possuidor da verdade, e como se isso não bastasse ser também possuidor
do critério de verificação de veracidade em relação a todas as demais formas de
saberes e discursos, os quais condena como "ideológicos", são no
mínimo contraditórios, para não dizer suspeitos, sejam tais discursos e falas
de qualquer natureza ou "ideologia", exceção feita, claro, às já
mencionadas ideologias arbitrárias e autoritárias.
À
guisa de conclusão: Hans Kelsen, criador da chamada "Teoria Pura do
Direito", advertia que quando a política entra por uma porta a justiça sai
pela outra.Talvez não seja tão bem assim, ou quem sabe, não com tanta pressa.
Mas que quando política e religião não só não conseguem identificar e definir
com clareza aquilo que a Filosofia da Ciência denomina "enquadramento de
tarefa", e acabam ultrapassando os limites fronteiriços que existem
justamente como forma de garantir a cada uma delas autonomia, soberania,
autodeterminação e emancipação, pode ser sinal de que as respectivas ideologias
que lhes servem de suporte estejam também elas ultrapassando a linha limítrofe
e tênue que separa ideologias "historicamente orgânicas" daquelas
que, em contrapartida, arbitrária e autoritariamente, viajam na contra-mão.
Poucos casamentos costumam durar para sempre. Mas mesmo quando a separação
parece ser inevitável e até aconselhável, deveríamos poder esperar que as
partes separadas consigam se manter estáveis, seguras e resilientes.
Mas
para que isso seja possível é preciso que haja antes de tudo reverência e
respeito mútuos. Só então se poderá quem sabe pensar em parceria, sinergia e
cooperação. Ultrapassar fronteiras e invadir territórios não parecem ser
estratégia adequada que vá nessa direção. As consequências da atual invasão
Russa frente a Ucrânia, que estamos vivenciando, são exemplos claros disso.
Lamentavelmente política e religião têm com frequência se alternado nessa
prática. Em tais casos ninguém ganha, todos perdem. Resta torcer e rezar para
que sabedoria e bom senso não tardem em entrar em ação.
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