"REPENSANDO A
EDUCAÇÃO: PRÓS E CONTRAS DO ENSINO (EM TEMPO) INTEGRAL)"
Lindolivo Soares Moura(*)
"... é natural que um grande atrativo
do ensino em período integral seja a possibilidade de deixar as
crianças com ocupações por maistempo"
(Blog de uma Escola de Vila
Velha, ES)
Em tempos de eleições
- na prática, invariavelmente, "tempos eleitoreiros" - o chamado "Ensino Integral", ali
onde ele existe, encontra-se em via de implementação, ou simplesmente permeia
os discursos, tem sido objeto de marketing e propaganda política. E como não
poderia deixar de ser, o mesmo vem envolvido por uma aura de novidade,
empreendorismo, e capacidade de resolução incomparáveis. Em tempos de
normalidade política, por outro lado, em que os ânimos estão menos exaltados,
as escolas públicas ou privadas que têm o Ensino Integral como sua principal
estratégia educacional, se esmeram no marketing e na propaganda como forma de atrair
e arregimentar o maior número possível de "clientes". Não é raro que
um grande número deles - pais, avós e outros responsáveis - preocupados e
ansiosos por resolver dificuldades e dilemas pessoais, notadamente aqueles
relacionados à vida profissional, acabem aderindo ao modelo sem refletir a
fundo não só sobre as vantagens mas também sobre os eventuais efeitos
colaterais adversos que tal modalidade de ensino possa trazer consigo.
Notemos antes de mais
nada que a expressão "ensino integral" é usada de forma ambígua:
acaba sendo empregada para caracterizar uma "modalidade" específica
de escola ou de ensino, quando na verdade deveria caracterizar o
"ideal" e o escopo de todo ensino e de toda e qualquer escola. O fato
de que se possa estar de acordo quanto à importância da integralidade no
ensino, não significa por certo que esse mesmo consenso deva ser
automaticamente aplicado ao chamado "Ensino Integral", como se fosse
essa a modalidade ideal ou mais adequada. Uma coisa são os fins, outra bem
diferente são os meios. Ninguém por certo se recusaria, podendo fazê-lo, a
buscar para seus filhos e netos um ensino no qual estejam contemplados aspectos
culturais, intelectuais, físicos, emocionais, sociais, e até
"vocacionais", dentre outros. Não me parece que seja essa a questão a
merecer especial atenção. O que pode e merece ser objeto de consideração são
questões outras, do tipo: somente o chamado Ensino (de tempo) Integral está em
condições de responder bem a essa demanda? Por quais razões o chamado "Ensino
Tradicional" - ou "Regular", como se prefira - não estaria em
condições de fazê-lo? Que eventuais desvantagens tanto uma forma de ensino como
a outra portam consigo, como uma espécie de "efeito colateral"?
Avaliados os prós e
os contras de ambas as modalidades, qual delas deveria ser considerada de fato
mais vantajosa, tendo-se em conta os principais objetivos que se pretende
alcançar? Por motivos óbvios a presente reflexão não pretende ser exaustiva no
trato com tais questões. Menos pretensiosa, busca tão somente levantar alguns
pontos que talvez mereçam um pouco mais de atenção.
Para efeito de
esclarecimento chamaremos de "Educação (em tempo) Integral" a
modalidade de "aprendência" na linguagem de Hugo Assmann -
"Reencantar a educação: rumo à sociedade aprendente" - ou
"ensino- aprendizagem" na terminologia tradicional, que se desenvolve
no ambiente escolar por aproximadamente oito a nove horas, enquanto o Ensino
que estamos denominando "Tradicional"
ou "Regular" se desenvolve por cerca de cinco horas. À primeira
vista algo chama a atenção: ou o Ensino Tradicional não tem pretensões e/ou
condições de alcançar a integralidade, ou, na hipótese de possuir ambas as
coisas devemos concluir que o ensino denominado "Integral" só se
diferencia do Ensino Tradicional ou Regular na extensão, ou seja, no número de
horas a mais em que o estudante permanece no recinto escolar. Ocorre que essa
conclusão é categoricamente rechaçada tanto pelos discursos, sejam eles
eleitoreiros ou não, como pelo "marketing" e a propaganda das escolas
que operam com a chamada "Educação
Integral", e buscam convencer pais e responsáveis das vantagens em optar
pelo mesmo.
Via de regra o
argumento mais forte nesse sentido consiste justamente em assegurar que a
escola em questão esteja em condições, nos vários aspectos requeridos para tal,
de garantir uma experiência e uma vivência "diferenciadas" ao aluno,
bem como uma educação que integre, com a melhor sinergia possível, os aspectos
anteriormente mencionados. Cientes de
que grande número de pais e responsáveis estão envolvidos durante praticamente
todo o dia com suas próprias responsabilidades e atividades, tais escolas se
dispõem também, claro, a garantir que seus filhos, nesse mesmo tempo, estarão
não apenas "seguros" do ponto de vista da proteção, mas igualmente
"ocupados" com obrigações e tarefas escolares, sem a perda de atenção
e foco que, segundo elas, certamente ocorreria caso estivessem em suas casas
manipulando computadores, celulares e outros aparatos eletrônicos disponíveis.
Esses talvez sejam os principais atrativos explorados pela oferta da chamada
Educação (em tempo) Integral.
Devemos reconhecer,
entretanto, que a busca de integralidade não é e nem pode ser exclusividade
desta ou daquela modalidade de ensino. A
chamada Educação Tradicional ou Regular, desde que devidamente pensada e
planejada, é sem dúvida também ela capaz de responder e corresponder com
excelência às mesmas demandas feitas à chamada Educação (em tempo) Integral,
exceto, claro, no tocante aos quesitos específicos já mencionados que só esta
última, por motivos óbvios, está em condições de proporcionar. Um exemplo dessa
capacidade de resposta por parte da Educação Regular ou Tradicional é o que
ocorre na Finlândia, país que depois de iniciar uma profunda reforma no Ensino
há mais de quatro décadas chegou na década passada a ser considerado o país com
a melhor educação do mundo, e que mesmo tendo perdido esse posto continua sendo
referência mundial quando o assunto é educação. Contrariamente aos países que
hoje ocupam o "topo", e que investem maciçamente na Educação (em
tempo) Integral sobretudo com objetivos claros de concorrência e competição no
grande mercado da imensa "aldeia global", o ensino finlandês
apresenta características bem distintas. Vejamos algumas delas.
Na Finlândia o
Professor leciona em média seiscentas horas anuais, enquanto nos Estados
Unidos, outra referência mundial em Educação, a média é praticamente o dobro,
acima de 1.080 horas. A "autonomia" do aluno - e não prioritariamente
a "competitividade" - é estimulada através da oferta de métodos de
ensino alternativos que exploram competências menos tradicionais, tais como
projetos direcionados para a busca de soluções de problemas comunitários e
enfrentamento de problemáticas sociais. As classes em geral são relativamente
pequenas, com cerca de vinte alunos, enquanto o número de aulas é menor, com
mais tempo de descanso para os alunos e possibilidade de melhor preparação das
aulas por parte dos professores. Há um reconhecido menor número de testes
formais de avaliação, bem como de tarefas e atividades para serem desenvolvidas
em casa, com duração próxima de meia hora. Apenas cerca de dez por cento dos
aspirantes a Professor são aceitos nas faculdades e universidades, enquanto
aproximadamente sessenta e seis por cento dos estudantes conseguem ingresso nas
mesmas, sendo esta a maior proporção de toda a Europa e, claro, sem comparação
com o Brasil. Esses dados, de 2016,
constam de um estudo de Bruno André Blume, formado em Direito
Internacional pela Universidade Federal de Santa Catarina.
Com essa modalidade
de ensino, a Finlândia é um dos países mais competitivos do mundo? Sem dúvida
que não! Ao menos quando comparada a países como Estados Unidos, China
(sobretudo a Província de Xangai),
Coréia do Sul e os chamados "Tigres Asiáticos" em geral, onde a
educação está diretamente voltada e direcionada para a competitividade, tanto a
nível interno - entre os próprios estudantes - como externo, visando o
enfrentamento da concorrência no grande mercado da imensa aldeia global.
Entretanto alguns dados impõem respeito e chamam a atenção. A Finlândia possui
um dos IDHs - Índice de Desenvolvimento Humano - mais altos do mundo - décimo
primeiro, segundo pesquisa Gallup em parceria com a ONU - índice este que
avalia, entre outros dados, renda per capta, saúde e educação. O país não
possui favelas e favelados, e é considerado um dos mais seguros para se viver -
índice de oitenta e cinco por cento nesse quesito, segundo pesquisa feita junto
à própria população. A educação é considerada "constitucionalmente"
direito de todos, do ensino básico à universidade; mesmo as escolas
particulares são gratuitas e subsidiadas pelo Governo. À parte sobre o que pode
significar "felicidade", o certo é que a Finlândia foi considerada o
país "mais feliz do mundo" por quatro anos consecutivos. Nem o fato
de ser um país altamente consumidor de antidepressivos parece ser suficiente
para por em xeque a qualidade de vida dos finlandeses, já que esse fato se
refere não só à Finlândia mas aos países nórdicos em geral.
O que afinal tem a
ver tudo isso com a Educação (de tempo) Integral? Nossa hipótese inicial é a de
que a integralidade perseguida pelo Ensino e pela Educação tem antes a ver com
critérios e quesitos outros que não necessariamente a "extensão",
contrariamente ao que a propaganda e o marketing em seus mais variados níveis
querem nos fazer crer. Apontar para a prática em nosso país, afirmando que os
Governos e as Escolas que optam pela
Educação (de tempo) Integral têm obtido melhores resultados que as de Ensino
Tradicional ou Regular, identificando "resultados" com
"notas", e notas com "performances", não nos parece
tampouco suficiente e adequado para que se possa encerrar de vez a questão.
Primeiro porque "nota", ainda que importante, obviamente, não é o
único quesito - e pode-se suspeitar de que seja o principal - a ser considerado
quando o que está em jogo é a "qualidade de vida", o "desenvolvimento 'humano'", e a
própria "saúde" em seus mais variados aspectos. Devemos considerar
com atenção e avaliar com critério até que ponto a "competitividade"
como característica preponderante de um sistema educacional tende a favorecer e
contribuir, de fato, para a saúde, a qualidade de vida, e o desenvolvimento
mais humanizado de uma população. Estresse, ansiedade e depressão, têm sido
diagnosticados - e isso já há bem tempo - como os três grandes males do século
XXI. Uma hipótese não descartada pela presente reflexão é a de que, justamente
ao contrário do que nos querem fazer crer, a "extensão" prolongada no
ambiente escolar pode vir a ser uma espécie de "tiro pela culatra",
tornando crianças, jovens e adolescentes ainda mais tensos, cansados,
estressados, e consequentemente menos resilientes para o trato tanto nas
relações interpessoais escolares, como na convivência social em geral. Apenas
uma hipótese? Sem dúvida! Mas que talvez mereça mais atenção do que comumente
lhe venha sendo dispensada.
À guisa de conclusão:
o estímulo à competitividade é bom, não há como negá-lo; difícil é saber o
limite e a partir de onde ele deixa de sê-lo. Se esse limite não for
estratégica e sabiamente respeitado, certamente teremos sérias dificuldades em
incutir nas gerações mais jovens princípios e valores como
"cooperação", compromisso e "solidariedade", assim como
"respeito", "tolerância", "compreensão" e outros
mais. Durante bom tempo muito se falou em "QI" - Quoeficiente de
Inteligência. Percebido como insuficiente, passou-se a chamar a atenção para o
"QE" - Quoeficiente Emocional. Hoje vem se falando e acentuando cada vez
mais a importância de um "QS" - do inglês, "Spirituality",
Quoeficiente de Espiritualidade. A integralidade da educação talvez esteja
menos na "extensão" do tempo e mais na real e sinérgica integração
dessas dimensões tão essenciais ao ser humano. Caso contrário poderemos
incorrer no erro de atribuir mais importância à "forma" do que ao
"conteúdo", ainda que evidentemente estes não sejam mutuamente
excludentes.
Em nosso país,
falando de um modo geral, a educação e o ensino têm sofrido intromissões excessivas
e reconhecidamente mais perniciosas que virtuosas pela engrenagem do poder
político, com cenas que descambam para os porões do politiqueiro e da
politicagem. Índices são literalmente "construídos", metas
"ideologicamente" (mal)traçadas, "performances"
estrategicamente "alteradas", por vezes não só cerceando como
tornando difícil o exercício da liberdade e da autonomia por parte dos mestres,
educadores e professores. Estados, Escolas, e a própria Federação, parecem
competir entre si, como se a qualidade da educação estivesse bem representada
por notas, escores, e índices de aprovações. Tudo isso lamentavelmente
contribui para que "a faixada" e a "maquiagem" prevaleçam
sobre a real qualidade do ensino e da educação. Claro que há exceções que
merecem ser reconhecidas e servem de referência, mas lamentavelmente essa
parece estar bem longe de ser a regra.
Dir-se-á que o Ensino
(de tempo) Integral favorece as classes mais pobres em vários aspectos: criança
na escola, alimentação, dispensa da creche, e por aí vai. Esse é um fato
inconteste. Assim como o são os inúmeros "vales" e "bolsas"
criados e mantidos por sucessivos governos. Isso entretanto não torna menos
imperiosa as advertências de uma recomendação feita há mais seis décadas pelo
Concílio Ecumênico Vaticano II: "Satisfaçam-se em primeiro lugar as
exigências da justiça para que não se dê como caridade o que já é devido a
título de justiça. Eliminem-se as causas dos males, e não só os seus efeitos.
Seja encaminhada a ajuda de tal maneira que aqueles que a recebem pouco a pouco
dela se libertem e se tornem auto-suficientes"
(Encíclica
Apostolicam Actuositatem).
A chamada Educação
(de tempo) Integral tem com certeza seus pontos positivos e suas inegáveis
qualidades. Ajuda a resolver problemas e dilemas que pais e responsáveis teriam
sem dúvida mais dificuldades de solucionar se não pudessem contar com ela.
Entretanto, é preciso reconhecer que muitas vezes o que é solução para uns pode
vir a se tornar problema para outros. O fato de muitas vezes os maiores interessados
que são os próprios estudantes não serem sequer consultados para participar das
discussões a respeito, não parece ser bom sinal; tanto a nível do Estado para
com o povo, como dos pais e responsáveis para com seus filhos e aqueles que
estão sob seus cuidados. Afinal, almejamos e queremos que nossos filhos, filhas
e netos, sejam educados e formados antes de tudo para a vida, como cidadãos
verdadeiramente "cosmopolitanos", ou nos damos por satisfeitos que
estejam sendo preparados apenas e tão somente para satisfazer às demandas e
exigências "tecno-científicas" do mercado de trabalho? Tratar a
Educação (de tempo) Integral como alternativa é sem dúvida agir com bom senso,
assim como pode ser contra-senso e até perigoso ver nela, "a priori",
a melhor ou a única alternativa de solução.
_____________________
(*)Possui
graduação em teologia pelo Instituto teológico pio XI (1983), graduação em
Psicologia pela Universidade Federal do Espírito Santo (1997), graduação em
Filosofia pela Faculdade Salesiana de Filosofia, ciências e letras (1986) e
mestrado em Filosofia pela Pontificia Universidade Gregoriana ,Roma -
Itália(1988) . Foi por 11 anos consecutivos professor de filosofia jurídica e
psicologia Jurídica do Centro Universitário de Vila Velha, ES.Durante esses 11
anos foi Coordenador Pedagógico por 05 anos e de Ensino por 1 ano e meio do
mesmo Curso de Direito. Atualmente é terapeuta de grupo, individual,
vocacional, Consultório Clínico Psicológico particular. Formou-se recentemente
em Psicodrama (02 anos) pelo Instituto Pegasus de Vitória, ES. Atualmente,
cursa a pós graduação TCC - Terapia Cognitivo Comportamental.
https://www.escavador.com/sobre/3708588/lindolivo-soares-moura
Nenhum comentário:
Postar um comentário