"TEOLOGIA
'E' LIBERTAÇÃO' TEOLOGIA 'DA' LIBERTAÇÃO, POLITICA E RELIGIÃO: QUAL SERIA MESMO
O 'XIS' DA QUESTÃO?"
Por Lindolivo Soares Moura(*)
"É melhor escrever errado a coisa certa, do que escrever
certo a coisa errada"
(Patativa do Assaré).
Entre as tantas
tentativas de definição e caracterização da chamada "Teologia da
Libertação", uma das mais provável e consensualmente aceitas é a de que
ela "representou", para seus opositores, e "representa",
para seus defensores e seguidores, uma abordagem ou corrente teológica cristã -
notadamente católica e protestante, acréscimo nosso - cujo foco principal está
centrado na libertação e na emancipação dos oprimidos através de uma clara e
assumida opção preferencial pelos pobres. Em razão da América Latina estar
localizada no mais extenso continente do planeta, e ter sido ao longo da
história altamente "explorada" pelo colonialismo europeu sob a
bandeira, a cruz e a ideologia de "processo
civilizatório-evangelizador", não é de admirar que tal Teologia tenha
encontrado aqui, séculos mais tarde, campo fértil e terreno propício para a
semeadura não só de suas idéias e de seu idealismo, como também de suas
práticas e realizações.
Mais que uma
"reação" - para seus opositores, verdadeira "subversão" -
parece ser razoável admitir que seu surgimento e implantação representaram de
fato uma "resposta" tanto aos diversos governos ditatoriais que se
espalharam pelo continente na segunda metade do século passado, incluindo o
Brasil, como também à convocação de "aggiornamento" - atualização,
adequação - feita pela Igreja Católica, que teve no Concílio Ecumênico do
Vaticano II, iniciado no ano de 1961 e com duração de três anos, uma de suas
expressões mais relevantes. Convocada pelo Papa Paulo VI, a Segunda Conferência
do Episcopado Latino- americano realizada em 1968 em Medellín, Colômbia, teve
como principal objetivo conceber uma "práxis" - simultaneamente iria
ser engendrada também uma vertente teológica correspondente - que de fato
respondesse à urgência de aplicação dos ensinamentos do Concílio à situação
pastoral-politico-social específica da América Latina.
Essa que poderíamos
chamar de "práxis em aggiornamento", em momento algum pretendeu ao
nosso ver contestar e menos ainda substituir a práxis tradicional da Doutrina
Social da Igreja, que sobretudo a partir da Encíclica "Rerum Novarum"
- "Das Coisas Novas" - do Papa Leão XIII, final do século XIX, impulsionou significativamente a ação
doutrinário-pastoral do Catolicismo nesse sentido. Nascida nesse contexto de
"aggiornamento" a mencionada vertente teológica recebeu sua
denominação muito mais em razão dessa práxis específica, como já o dissemos, e
menos como contestação para com a práxis tradicional. Posteriormente sofreria
acusação clara nesse sentido, provavelmente muito mais em razão do excesso de
conservadorismo de certa ala da cúpula da Igreja e dos temores nascidos de um
imaginário demasiadamente fértil. "O medo é um microscópio que sempre
aumenta o perigo", afirmava o Historiador e Dramaturgo francês Jean
Commerson. Uma postura mais sensata e equilibrada talvez fosse capaz de ver na
recém-implantada Teologia quando muito uma teologia "diferente",
"específica" ou simplesmente "aggiornada", se pudéssemos
fazer uso dessa combinação de termos, certamente nem melhor nem pior que
nenhuma outra.
Ao longo de sua
história a Teologia da Libertação sempre se declarou e se posicionou como sendo
"supradenominacional", "suprapartidária", e
"inclusivista" no sentido de comunhão eclesial e inclusão social. A
acusação de "sectarista" foi, claro, acrescentada pelas alas mais
conservadoras da Igreja, e por certo muito bem recebida pelo regime ditatorial
vigente, que acrescentando apenas uma pitada a mais de malícia e
"imaginação" passou a considerar e tratar como
"reacionários" e mesmo "subversivos" seus ideólogos,
fautores, partidários e seguidores. Esse tratamento de "choque",
tanto por parte de setores da Igreja como do "regime" vigente,
tornou-se ainda mais exacerbado e
implacável a partir do momento em que a inserção e o envolvimento social
de representantes da Teologia da
Libertação foi se configurando cada vez mais, bem como na exata medida em que
setores do chamado "mundo político" foi se aproximando e
"dialogando" mais e mais com essa forma específica e diferenciada de
"ser" e "atuar" da Igreja.
É claro que existe um
inegável ponto de conexão e uma área de tangência entre política e religião.
Primeiro porque o chamado "bem comum" está no horizonte de ambas;
segundo, porque o conceito de libertação envolve necessariamente a dimensão
temporal do humano, independentemente de qual seja a religião ou a teologia em
questão. Por fim, é a completude e a integralidade do ser que estão em jogo,
exigindo das diversas esferas que lidam com o humano uma intervenção conjunta,
cooperativa e sinérgica na busca por essa completude e integralidade. A própria
Igreja, sabedora disso, sempre lançou e com frequência tem lançado mão, para
falar de si mesma, da metáfora do corpo como "organismo", enaltecendo
a importância de cada uma das diferentes partes que se sintonizam e se
"sincronizam" visando produzir o máximo de sinergia e cooperação.
Para usar uma
expressão da Sociologia, qualquer Teologia que não se revista de uma
"ideologia historicamente orgânica", na linguagem de Gramsci, poderá
estar comprometida com "o que" ou com "quem quer" que seja,
menos com "o que" e "com quem" deveria. Não pode ser
simplesmente uma "gaiola de palavras", como dizia Rubem Alves, onde
o "Grande Mistério" acaba
sendo aprisionado e impedido de se transformar em práxis e libertação.
"Ação politica!?", objetarão os defensores de uma teologia mais
tradicional e pentecostalista. Sim, por que não? O termo "política"
não é, como já o dissemos em outra oportunidade, "propriedade privada da
chamada "esfera partidária ", como de resto não o é de nenhuma outra
em particular. Política, aristotelicamente falando, é a ciência e a arte do
viver em comum, do envolvimento com a "res" - coisa, gestão -
pública, de onde vem o termo "república". Claro, sempre em
perseguição de um bem maior a que chamamos de "bem comum". A grave
acusação de "alienação" direcionada às mais diversas Religiões
organizadas e institucionalizadas, e às suas respectivas teologias - ao fim e
ao cabo, à própria Filosofia - quase sempre tem sido em função de um
envolvimento mínimo, "raquítico", inexpressivo para não dizer
"comprometedor", para com esse campo particular e específico de
atuação.
Mas se a Teologia
da Libertação cumpriu com coragem e determinação essa "função
social", por qual razão ela foi tão enaltecida por um lado e ao mesmo
tempo tão criticada por outro? Creio que talvez caiba aqui um contundente e exemplar
"mea culpa" por parte daqueles que, mesmo impulsionados pela mais
reta e nobre intenção, acabaram avançando e por vezes continuam ainda a
fazê-lo, para além da linha limítrofe, inegociável e necessária, entre política
e religião. Assim como o conservadorismo em excesso tende a exacerbar sua
crítica ao fazer do medo uma espécie de "lupa" que aumenta o perigo e paralisa, algo semelhante mas
inverso pode ocorrer quando a coragem é literalmente "turbinada" pela
paixão. Lou Marinoff, Orientador Filosófico norte-americano, adverte em seus
escritos - "Pergunte a Platão", por exemplo - que nenhuma fé é
racional, ou seja, movida precipuamente pela razão, mas sim
"apaixonada", isto é,
impulsionada antes de tudo pela paixão. O Filósofo e Historiador Reino
Unidense Bertrand Russell parece compartilhar plenamente com essa avaliação e
percepção. Ele escreveu: "A fé apenas amplia o bem ou o mal que já existe.
Homens cruéis acreditam num Deus cruel e usam sua crença para justificar sua
crueldade. Homens bons acreditam num Deus bondoso e serão bondosos de qualquer
jeito".
Ora, é inegável, e ao
mesmo tempo lamentável, que um significativo número tanto de Teólogos e
Ideólogos, assim como de Pastores, Presbíteros e outros Ministros conectados
tanto à Teologia Tradicional como à Teologia da Libertação, acabaram
ultrapassando - e por vezes continuam ainda a fazê-lo, conscientes disso ou não
- essa linha limítrofe e fronteiriça a
ser minimamente respeitada entre política - sobretudo a chamada "política
partidária" - e as assim chamadas "religiões organizadas ou
institucionalizadas", como as denomina Marinoff. Certamente aqueles que
realizaram ou continuam realizando essa espécie de "invasão de
território", negarão categoricamente, com os dedos em cruz, ter incorrido
ou estar incorrendo em qualquer tipo de desvio ou distorção. Da mesma forma que
alas e posturas excessiva e manifestamente conservadoras dentro da Igreja
jamais reconhecerão e admitirão que o são. Faz parte em ambos os casos de suas
respectivas "estratégias de autopreservação". Todas as instituições,
salvo meritórias e raríssimas exceções, tendem a ser por natureza e instinto
conservadoras e corporativistas. Política e religião não parecem constituir
exceção, ao menos a se considerar o testemunho da história que parece jamais
haver demonstrado o contrário. Nada sugere, poder-se-ia concluir por via de bom
senso, que numa modernidade tão líquida e pluralista como a nossa essa regra
seria quebrada, e menos ainda que a exceção se transformaria em regra ou
princípio de ação.
Temos presenciado
essa "ultrapassagem" da linha limítrofe por parte de ambas, política
e religião, sobretudo ultimamente, nesses tempos de eleição. Se nunca
provavelmente se viu "o nome de Deus ser tão descarada e impunemente
pronunciado em vão", jamais por outro lado provavelmente se presenciou
tanto discurso político - partidário, inclusive - ecoando pelos púlpitos,
altares e celebrações. Nesse segundo caso, com uma agravante: numa clara
manifestação de predileção e apoio a governos, partidos e candidatos que pouco
ou nada têm a ver com a Doutrina Social da Igreja e com sua estratégia
teológico-pastoral de intervenção. Não se trata antes de tudo se são partidos e
candidatos de esquerda ou de direita, do centrinho ou do centrão. Lobos sabem
muito bem se travestir de cordeiros, quando a intenção é dominar a presa com o
máximo de aproximação, da mesma forma que em tempos de competição explícita,
como parecem ser os atuais, cordeiros também sabem muito bem se camuflar de
lobos, arreganhar os dentes e tentar convencer possíveis competidores a
desistir da competição. As "formas" - nomes, bandeiras, títulos e
sobrenomes - são na maioria absoluta das vezes apenas maneiras estratégicas de
ocultar o real "conteúdo", verdadeiras ciladas, arapucas e alçapões.
Presa abatida, aí sim não hesitam e tampouco fazem esforço algum, uns e outros,
em ocultar "o que" e "quem" realmente são.
Por essas e outras
razões é que, na sábia advertência de André ConteSponville, em seu
"Pequeno Tratado das Grandes Virtudes, a polidez faz pouco caso da moral e
a moral da polidez. "Um nazista polido - pergunta ele - em que alteraria
ou tornaria menos hediondo o Nazismo? Em nada;
talvez o torne até mais". E completa: "Como o sangue se vê
melhor nas luvas brancas, o horror e o terror se mostram ainda mais hediondos
quando revestidos e ocultos sob o manto da cultura e da civilização".
Portanto terminologias esquerdistas e direitistas a princípio não revelam absolutamente nada de
seus reais interesses e eventuais falsas e até más intenções. Deixar-se por
qualquer uma delas ser seduzido e guiado, sem espírito reflexivo, crítico e
consciente, é certeza de se ser arrastado para o matadouro - "vida de
gado", como bem canta em prosa e verso José Ramalho - passiva e
obedientemente, sem esboçar reação.
Ao fazer opção
"clara", "manifesta" e "declarada" tanto pelo
partidarismo de esquerda quanto de direita, a Igreja enquanto Instituição não
apenas se auto-desvirtua comprometendo profundamente sua natureza e missão,
como incorre no risco altamente perigoso de orientar e "conduzir" seu
rebanho por águas poluídas e relvas nada frescas, por vezes até contaminadas.
Nenhum bom administrador deveria incorrer no risco de acabar colocando a raposa
para tomar conta do galinheiro próprio, e menos ainda do galinheiro de seu
patrão. Em tempos de eleições, lobos, cordeiros, cães de guarda e raposas, caça
e caçador, presa e predador, todos estão à solta - "temporada de
caça", como se diz então - muitos dos quais recém-saídos de seus
"locais de isolamento e hibernação". Pastores e pretensos líderes
também podem estar travestidos, por que não! Não diz a Escritura considerada
sagrada que é preciso estar alerta e vigilante para com os "falsos
pastores", que ao invés de proteger e cuidar só querem iludir, enganar,
abater e se fartar do próprio rebanho?
À guisa de conclusão:
insinuava Nietzsche que o verdadeiro e autêntico Cristianismo morreu na cruz.
Crítica aguda, pesada, mas não o suficiente para ser ignorada ou descartada.
Assim como Sartre insistia que o Existencialismo é um humanismo, muitos não
hesitam em ver Nietzsche não apenas como um "dos grandes", mas como
um "dos maiores" humanistas que já visitaram a nossa história. Pelo
sim e pelo não, é preciso reconhecer que ambos deixaram um legado valioso para
o entendimento do que é "ser humano". Nietzsche talvez tenha
perscrutado mais a fundo os labirintos dessa espécie incrível, chamada
humanidade, enquanto Sartre - assim como Gandhi, Luther King, Mandela e tantos
outros - não hesitou em sair às ruas, postar-se à frente, e liderar grandes e
revolucionárias manifestações. Todos os citados, os que vivo fossem, certamente
se colocariam em "sintonia fina" com os adeptos e partidários - desde
que sem "partidarismos" - da assim chamada "Teologia da Libertação".
Tal comprometimento,
como se sabe, produziu não poucos mártires. Desde leigos, Diáconos,
Presbíteros, Bispos, Monsenhores e outros mais. Muitos dirão que por culpa
própria, por terem engendrado o próprio martírio, ou quando não, por terem
caminhado em direção a ele. Tal juízo não nos parece o mais coerente e menos
ainda o mais justo. Seria algo como afirmar que tanto o líder máximo do
Cristianismo, como de resto seus doze discípulos mais próximos, chamados de "Apóstolos", teriam conhecido
fim semelhante "por escolha ou culpa própria", e não em consequência
do anúncio e das denúncias de seu insistente e persistente compromisso com a
Evangelização. "Bem-aventurados os que são perseguidos e mortos por causa
da justiça!". Quem por opção de missão se dispôs a sê-lo, e na prática não
o é, por evitar passar ao largo, tanto do martírio como da perseguição, deveria
no mínimo rever sua escolha e quem sabe também sua vocação.
O martírio seria
garantia de que não teriam incorrido em erros, equívocos ou distorções, os que
a ele foram submetidos? Pelo Mestre, que o digam os Teólogos e Exegetas. A mim
só me ocorre lembrar que de acordo com a Escritura considerada sagrada
"viveu e experimentou Ele em tudo, exceto no pecado, a condição
humana". Em relação aos demais, de forma alguma. Sua humana natureza -
demasiado imperfeita e limitada, aliada às suas fraquezas e paixões - nos
impede de responder que não. "Santa e pecadora": não é assim que a
"Mater Ecclesiae", num raro e belo gesto de humildade, se
autoproclama? Oxalá que essa humildade seja suficiente para reconhecer também
que suas orientações, escolhas e decisões -
notadamente no campo do político, e mais ainda do
"politico-partidário" - e em
tempos de eleição, nem sempre são as mais acertadas e adequadas, merecendo
assim, como deve sê-lo em qualquer outra área das diversas ciências e da
própria Ciência-Mãe, revisão, correção e reorientação.
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(*)Possui graduação em teologia pelo Instituto teológico
pio XI (1983), graduação em Psicologia pela Universidade Federal do Espírito
Santo (1997), graduação em Filosofia pela Faculdade Salesiana de Filosofia,
ciências e letras (1986) e mestrado em Filosofia pela Pontificia Universidade
Gregoriana ,Roma - Itália(1988) . Foi por 11 anos consecutivos professor de
filosofia jurídica e psicologia Jurídica do Centro Universitário de Vila Velha,
ES.Durante esses 11 anos foi Coordenador Pedagógico por 05 anos e de Ensino por
1 ano e meio do mesmo Curso de Direito. Atualmente é terapeuta de grupo,
individual, vocacional, Consultório Clínico Psicológico particular. Formou-se
recentemente em Psicodrama (02 anos) pelo Instituto Pegasus de Vitória, ES.
Atualmente, cursa a pós graduação TCC - Terapia Cognitivo Comportamental.
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