GRATIDÃO: O AGRADECIMENTO É A MEMÓRIA DO CORAÇÃO
“...atirou-se aos pés de Jesus, com o
rosto por terra e lhe agradeceu; e este era um samaritano”
A reflexão bíblica é elaborada
por Adroaldo
Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho do 28º Domingo do Tempo Comum que
corresponde ao texto de Lc
17,11-19.
A tradição judaica transmite este
ensinamento: “Aquele que desfruta de um bem qualquer neste mundo sem dizer
antes uma oração de gratidão ou
uma benção, comete uma injustiça”.
A ação de graças está no coração mesmo
da liturgia e da oração cristãs. A sorte e a felicidade do cristão consistem em
poder dar graças a Alguém. O maior drama vivido por um ateu é não ter a Quem
agradecer.
A pessoa compreende que “tudo é dom e graça de Deus”
e esquecer de agradecer é passar ao lado daquilo que constitui a beleza da
vida. Agradecer é muito mais que dar graças. Implica reconhecimento e
correspondência. “Ali onde não há gratidão, o dom fica perdido” (Bruno Forte).
Lucas situa o relato de hoje no
caminho de subida a Jerusalém,
no limite entre Galileia e Samaria, lugar
chave de disputas religiosas. Os leprosos que saem ao encontro de Jesus e gritam de
longe pedindo-lhe que os cure, são dez. Significativamente, a lepra não
distingue entre judeus e gentios, galileus e samaritanos. Todos são irmãos na
miséria.
No relato podemos identificar os
mesmos componentes presentes em outras narrações semelhantes de curas: apresentação
da situação de enfermidade (“dez leprosos vieram ao seu encontro”), petição de
cura (“Jesus,
Mestre, tem compaixão de nós!”), intervenção de Jesus (“Ide
apresentar aos sacerdotes”), cura (“enquanto caminhavam, aconteceu que ficaram
curados”) e reação diante do milagre.
É este último elemento que está mais
desenvolvido na cena, e nele enfatiza-se o contraste da atitude de um dos
leprosos (um samaritano que volta para agradecer a Jesus) com a dos
outros nove. Na realidade, os outros nove leprosos curados não fazem senão
cumprir as instruções de Jesus:
ir e apresentar-se aos sacerdotes. Mas só um tem a suficiente finura espiritual
para reconhecer profundamente o dom recebido e, deixando de lado as prescrições
legais, dá primazia à expressão de agradecimento.
A gratidão parece apresentar-se aqui
como um plus, como algo que deveria brotar com naturalidade nas relações
humanas e na vida de fé, e não como uma atitude estatisticamente minoritária
(um entre dez).
O samaritano sente que para ele começa
uma vida nova; de agora em diante, tudo será diferente: poderá viver de maneira
mais digna e ditosa. Sabe a quem ele deve isso. Precisa encontrar-se com Jesus.
Esta é a fé do samaritano que confia
em Jesus,
que crê no agradecimento mais que nas leis do sistema religioso. O
agradecimento como atitude vital parece requerer, pois, uma especial
sensibilidade espiritual, precisamente essa que encontramos nos santos e
santas.
Caberia perguntar-nos quais são as
razões que nos dificultam esta vivência da gratidão, quando esta deveria brotar
de modo espontâneo e natural frente a tanto bem recebido.
No início de uma carta de Santo Inácio a um de seus primeiros
companheiros, Simão
Rodrigues, lemos isto: “À luz da divina bondade me parece
que, embora outros possam pensar de modo diferente, a ingratidão é o mais
abominável dos pecados aos olhos de nosso Criador e Senhor, e de todas as criaturas capazes de
aproveitar-se em sua divina e eterna glória. Já que é esquecimento das graças,
bens e bençãos recebidas; e além disso aqui se encontra a causa e começo de
todos os pecados e desgraças. Pelo contrário, a gratidão que reconhece as
bênçãos e bens recebidos é estimada e amada não só na terra senão também no
céu” (18 de março – 1542).
Na vivência cristã, a gratidão nasce
com naturalidade e espontaneidade nos corações humildes, nas pessoas
conscientes de que aquilo que recebem não é por mérito ou retribuição. Tudo é
gratuidade.
Elas adquirem a fina percepção de que tudo é Graça,
tudo é “de graça”,
são “agraciadas”,
“cheias de graça”...
Precisamente porque perceberam suas vidas como um presente, voltam-se para
Deus, entregando-lhe “tudo o que têm e possuem”.
Marcada pela gratidão, a
pessoa deseja sempre corresponder o melhor, rejeitando todo tipo de mediocridade
na entrega e no serviço.
O agradecimento é uma atitude fundante
e fecunda que possibilita viver o cotidiano com outro “sabor”, com outro “ar”.
Do agradecimento brota um estado interior de consolação, de disponibilidade, de
agilidade em dar resposta às demandas da vida, de uma sensibilidade mais viva
para perceber tudo aquilo que a vida cotidiana tem de dom e sem ansiedade por
não receber compensações ou recompensas.
O agradecimento é a experiência humana
que mais ativa a generosidade como atitude vital de nossa existência de
criaturas amadas e presenteadas por Deus.
O agradecimento como atitude básica na
vida é a tomada de consciência daquilo que estamos recebendo, a acolhida dos
bens que nos são dados e das pessoas que nos vêm ao encontro; é viver não tanto
dependente daquilo que cremos que merecemos e não nos dão, quanto daquilo que,
sem haver merecido, nem esperado, nem pedido, recebemos e continuamos recebendo
no dia a dia.
Esse “agradecer” de fundo, esse viver
“agradecidamente” não nos é favorecido pela cultura consumista que nos incita a
estar sempre mais dependentes daquilo que não temos que daquilo que nos é dado
com abundância; uma cultura que fomenta e aviva uma eterna insatisfação,
matando a capacidade de “recordar tantos benefícios recebidos pela criação,
redenção e dons particulares” (S. Inácio).
O que é que se encontra “de graça”?
Onde? Quem pratica essa aventura da “mão aberta”, da largueza de coração? Há
aqueles que não conhecem a palavra “gratuito” e, por isso, são petrificados
frente à gratidão. São surdos e mudos para o “muito obrigado”.
A gratidão é alegria, a gratidão é
amor. É por isso que ela se aproxima da caridade, que seria como uma gratidão
sem causa, uma gratidão incondicional. Que virtude mais leve, mais luminosa,
mais humilde, mais feliz!!! Gratidão
= desfrutar a eternidade no cotidiano da vida.
Para meditar na oração:
É importante cuidar de nossa gratidão, mantê-la
viva e ativa. Não é natural que percamos a memória, a consciência do muito que
temos recebido e continuamos recebendo, como possibilidades de vida e de
sentido, como dons e capacidades, como criatividade e sonhos...
Cabe a nós, como seguidores de Jesus,
pensar e falar agradecidamente, ter gestos de gratuidade. Ser
agradecido se aprende agradecendo e tudo se pacifica quando o gratuito marca
nosso ser por inteiro. A vida nova vem da Vida recebida e partilhada; ela nos
coloca acima do êxito e do fracasso, pois está no nível da gratuidade.
- Diante d’Aquele de quem tudo
procede, faça memória de todos os dons recebidos, deixando brotar do seu
coração uma atitude de contínua ação
de graças.
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