A missão presbiteral para uma Igreja em saída e a superação da
autorreferencialidade eclesial
Por Dom Pedro Brito Guimarães
O
Papa Francisco quer uma Igreja em saída, uma Igreja nas ruas, fora da zona de
conforto e da onda da autorreferencialidade. Mas, segundo Aparecida, “falta
espírito missionário em membros do clero, inclusive em sua formação” (DAp 100
e). O que fazer para a superação desta autorreferencialidade eclesial?
Introdução: a missão, o maior desafio da Igreja
“Como
gostaria de encontrar as palavras para encorajar uma estação missionária mais
ardorosa, alegre, generosa, ousada, cheia de amor, até o fim, e feita de vida
contagiante”. Faço minhas essas palavras do Papa Francisco para iniciar este
artigo que me foi sugerido pelos editores da Revista Vida Pastoral e
cobrado por alguns amigos que me disseram que não falei de missão no artigo que
escrevi no ano passado. Falando aos participantes da Assembleia Geral das
Pontifícias Obras Missionárias (5 jun. 2015), assim se expressou o papa: “o anúncio
do Evangelho é a primeira e constante preocupação da Igreja, é o seu
compromisso essencial, o seu maior desafio e fonte de renovação”. A missão foi,
é e sempre será o maior desafio da Igreja. No dia em que a Igreja resolver
renunciar à agenda missionária, nada mais lhe restará a fazer aqui na terra.
O problema maior da
Igreja não é, como alguns pensam, a realidade sociocultural e religiosa; não
são as distâncias geográficas, a falta de estrutura e de recursos econômicos e
humanos. O que a impede mesmo de cumprir bem a sua missão é a falta de missão.
Todos esses desafios decorrem da missão. Não é difícil cuidar pastoral e
administrativamente de uma paróquia. O grande desafio é cuidar da missão e
gerar cultura missionária. O desafio maior que recai sobre nossos ombros é
transformar as estruturas paroquiais em algo decididamente missionário (cf. DAp
370). Não é difícil celebrar sacramentos: eucaristia, batismo, matrimônio,
penitência e unção dos enfermos. O desafio imperioso é transformar essa prática
sacramental milenar em missão, capaz de gerar esperança e vida nova no coração
das pessoas. Não é difícil alimentar a vida do povo com práticas devocionais.
Difícil mesmo é converter essas práticas em missão. Não é difícil conseguir
dinheiro na Igreja. O desafio maior é aplicar esse dinheiro na missão. A missão
não é enfeite, adorno, luxo, nem lixo na vida da Igreja.
A missão é a essência
e a natureza da Igreja (RM 62). A raiz missionária da Igreja está no Mistério
Trinitário de um Deus que, sendo Uno, é, ao mesmo tempo, Trino: um Deus
família, amor e comunhão. Um Deus que, desde toda a eternidade nos pensou e nos
quis para viver na sua intimidade. A Igreja existe no mundo para anunciar a
boa-nova do Reino de Deus ao coração das pessoas, a fim de que todos sejam
salvos e cheguem ao conhecimento da verdade (cf. 1Tm 2,4).
Antes de ser
teológica, a missão é antropológica. “A missão no coração do povo não é uma
parte da minha vida, ou um ornamento que posso pôr de lado; não é um apêndice
ou um momento entre tantos outros da minha vida. É algo que não posso arrancar
do meu ser, se não me quero destruir. Eu sou uma missão nesta terra, e para
isso estou neste mundo” (Papa Francisco, EG 273).
Jesus não amenizou
nem idealizou a missão. Ele disse que seria desprezado, torturado, morto e
sepultado por causa da missão. Ele consagrou radicalmente sua vida à missão
recebida do Pai: construir o Reino nos caminhos da história. Disse que os
apóstolos enfrentariam os mesmos desafios que ele enfrentou por causa da
missão. E, por fim, disse ainda que o Reino sofreria violência por causa da
missão. Jesus não diminuiu as exigências do Reino para satisfazer o desejo de
vida fácil e de comodidade dos discípulos. Não prometeu vida fácil aos seus
seguidores. Prometeu algo muito maior e mais significativo: a vida eterna.
Nossas alegrias na missão não são advindas dos nossos méritos, de nossas boas e
belas ações, mas da certeza de que Jesus recompensará aqueles que neste mundo
se dedicam à construção do Reino. A grandeza de nossa vida não consiste em
assumir a lógica das grandezas do mundo, do prestígio, da fama e do poder. Como
Jesus, devemos ser servos, lavar os pés uns dos outros. Devemos descer até o
nível de Jesus para entrar na verdadeira grandeza, a grandeza de Deus, que é a
grandeza do amor livre e gratuito.
- Um dia missionário de
Jesus (Mc 1,1-39)
Que Jesus foi o
missionário, ninguém, de sã consciência, pode duvidar e negar. Ele foi e sempre
será o primeiro evangelizador e missionário do Pai. Tanto assim que os
evangelistas reservam uma parte de seus evangelhos para apresentar um sumário
dessa sua atividade missionária. Podemos, então, nos perguntar: como resumem os
evangelhos a jornada missionária de Jesus? Como foi o seu dia a dia
missionário? O que fazia? Quais atitudes ele assumiu? Com qual espiritualidade?
Quais foram os lugares por onde Ele passou? Com quem Jesus mais gostava de se
encontrar?
Jesus foi ao deserto,
para onde ia muita gente, sedenta de mudanças. Não foi a um lugar qualquer, mas
onde estava João, o “batizador”, que convocava o povo para mudanças corajosas,
seja na religião, seja nas relações sociais e políticas. Jesus pediu o batismo
de adesão ao movimento popular religioso de renovação. No relato do seu batismo
são reveladas as três características da sua missão: a sua identidade (“Este é
o meu Filho Amado”), a sua autoridade (“Nele está o meu agrado”; “escutem o que
ele diz”) e a sua missão (“O Espírito desceu em forma de pomba e logo o impeliu
para o deserto”). Jesus não teve mais dúvidas: havia chegado a hora de tornar
pública a sua missão. Ao saber da prisão de João, Jesus, indignado e movido
pela misericórdia, em favor do povo ferido, oprimido e machucado, acelerou os
tempos, lançou a missão, recebida do Pai, na praça de Cafarnaum (Mc 1,14-15).
Convocou uma primeira equipe missionária (Simão, André, Tiago, João) e logo
partiu para a missão (Mc 1,16-20). Essa é a primeira ação missionária de Jesus.
Este também deve ser o primeiro ato missionário da Igreja: convocar as pessoas,
nucleá-las, formá-las e convencê-las de que vale a pena ser e viver como
missionário. Na missão, esta fase coincide com o aquecimento, a preparação, os
primeiros contatos, a motivação, as visitas e as reuniões. Trata-se, pois, do
tempo da sensibilização, da motivação, da mobilização, do despertar, da tomada
de consciência da realidade sociorreligiosa, da seleção e preparação dos
missionários, da formação das equipes, da organização do calendário, do
mapeamento dos setores missionários, da realização dos retiros e de outros
eventos da formação dos missionários.
Mas, como foi mesmo a
primeira jornada missionária de Jesus? Jesus foi à sinagoga, bem cedinho, ou
seja, à Casa da Palavra (Mc 1,21-28). O seu dia missionário começa propriamente
com a oração, na sinagoga, assim como terminará esse mesmo dia missionário de
madrugada, também em oração (Mc 1,35). Não se faz missão sem oração. Missão se
faz com os joelhos dobrados. Jesus, antes de qualquer ação, rezava ao Pai. Por
isso, ir à igreja para ouvir e meditar a Palavra de Deus, para rezar, colocando
diante de Deus nossa vida, nossas inquietudes, os problemas que afligem nossa
vida pessoal e comunitária, é a primeira ação missionária. A maior caridade
pastoral que o presbítero deve fazer é ensinar o povo a rezar. Jesus ensinou os
apóstolos a rezar. Deu-lhes de presente a sua oração, a oração do Pai-Nosso. O
Catecismo da Igreja Católica nos diz que o Pai-Nosso é o resumo de todo o
Evangelho (CIC, 2761). A eficiência de nossa ação missionária depende da
qualidade e da intensidade de nossa oração.
Na sinagoga, Jesus
expulsa um espírito impuro. O que significa isso? Jesus purifica o ambiente,
para deixar espaço à missão. O que os fariseus ensinavam na sinagoga estava
contaminado de preconceitos e de mentalidade legalista e moralista. Jesus
desmascarou uma religião hipócrita, que dividia as pessoas em puras e impuras.
Em seguida, saindo da sinagoga, entrou na casa de Pedro (Mc 1,29-34). Esse é o
segundo espaço missionário que Jesus visita. Ali ele encontra a sogra de Pedro
doente. Jesus se aproxima dela, toma-a pela mão, levanta-a da cama e a cura da
febre. A missão cura, liberta, salva, livra as pessoas da febre e de todos os
males. O melhor da graça é a ação de graça. A sogra de Pedro, livre da febre,
começou a servir Jesus e seus discípulos. Essa é a finalidade do milagre e da
cura. Passar a servir Jesus é o maior milagre que pode acontecer na nossa vida.
Missão é servir. Portanto, o melhor da missão de Jesus, bem como da nossa, é
recuperar a dignidade humana perdida e colocar a pessoa em estado de serviço e de
missão.
O
dia missionário de Jesus continua. Ao cair da tarde, quando já tinha passado o
dia de sábado, cheio de proibições (terminava pelas 18h00), muita gente,
doente, perturbada, juntava-se no meio da rua, perto da casa de Pedro, onde
estava Jesus. Aí na rua, Jesus atendeu a todos. Curou os doentes e expulsou os
demônios. Muita gente se alegrou. Foi um dia muito cansativo, mas cheio de vida
nova, de grande esperança. Jesus fez crescer a autoestima adormecida no meio do
povo. Um grande milagre. Foi um dia cheio das surpresas de Deus. O dia
terminou, mas a missão ainda não acabou. Missão começa na terra e só termina no
céu. E se lá não chegar não é culpa de Jesus, é culpa nossa. Esse dia
missionário de Jesus deve servir de modelo de missão para a Igreja. E ele o
deixa como testamento para nós. O que ele fez e falou constitui o itinerário da
semana missionária. A fonte de inspiração de qualquer missão é Jesus Cristo, o
Missionário do Pai, o primeiro evangelizador e criador do espírito missionário
da Igreja. É nesse sentido que se entende o que disse o Papa Francisco aos
membros das Pontifícias Obras Missionárias: “com tantos planos e programas, não
deixem Jesus fora da obra missionária”.
Comumente, quando
termina um dia de trabalho, quando cai a noite, não queremos ver mais ninguém,
fazer mais nada, a não ser tomar um bom banho, descansar, relaxar e dormir.
Jesus age missionariamente, de maneira diferente. Depois de um dia inteiro de
missão, ainda tem disposição para cuidar dos doentes. E em seguida, de madrugada,
quando ainda estava escuro, ele foi encontrado no deserto e em oração. E
disposto a ir às outras comunidades que ele ainda não havia atendido
pastoralmente. Madrugada, deserto, solidão, silêncio e oração são tempos,
lugares e atitudes sagrados para a missão. Na missão, este é o tempo de
avaliação, de colher os frutos, de articular as forças e de organizar os
serviços e ministérios e elaborar o projeto de evangelização para seguir em
frente.
- O falimento de uma vocação
missionária (Jn 1,1-4,11)
“Esta
geração perversa e adúltera busca um sinal, mas nenhum sinal lhe será dado a
não ser o sinal do profeta Jonas” (Mt 13,39). Que sinal é esse e o que ele
representa para a nossa missão hoje? Quem responde a essa pergunta é o Papa
Francisco: “uma grave doença ameaça hoje os cristãos: a ‘síndrome de Jonas’,
que nos faz sentir perfeitos e limpos, como acabados de sair da lavanderia, ao
contrário daqueles que julgamos pecadores e, por conseguinte, condenados a
desenrascar-se, sem a nossa ajuda. Jesus recorda que, para nos salvarmos, é
necessário seguir ‘o sinal de Jonas’, isto é, a misericórdia do Senhor” (L’Osservatore Romano,
15. out. 2013).
Na missão, precisamos
refazer a travessia de Jonas, passar de barco pela fuga, pela desobediência,
pela pequena rebeldia, pelo afogamento. O livro de Jonas que, na verdade não é
nem um livro, nos moldes dos profetas, mas um conto, uma novela, que tem como
enredo principal a experiência falida da vocação de um profeta. No miolo da
narrativa desse conto encontramos a concepção de Deus quase banalizada. Esta é
apenas a concepção de Deus de uma época ou é também a do nosso tempo?
Sabemos que o povo de
Israel foi, por muitos anos, exilado. E foi essa experiência de exílio que o
fez compreender que Deus não é um Deus localizado, que pode ser domesticado ou
manipulado. Esta mesma experiência o fez compreender que o Deus dos pais é o
Deus de toda a humanidade, que se revela em qualquer lugar, a qualquer pessoa
(Jo 4,21-24), e não a um grupo de privilegiados. Compreendemos isso através do
chamado de Jonas. Vejamos:
Jonas
foi chamado por Deus duas vezes (Jn 1,1-4; 3,1ss). No primeiro chamado, a sua
resposta manifestou sinal de uma vocação falida. Jonas, ao ouvir o chamado de
Deus, foge para longe do Senhor. Mas dele não se pode fugir. Ele está em todo
lugar, em qualquer resposta, mesmo quando dizemos não. Em qualquer lugar que
estivermos, estaremos na janela da casa do nosso Pai. Jonas é chamado para
salvar Nínive, cidade grande, pecadora e carente da misericórdia de Deus. Mas
como é a “casa do inimigo”, foge para longe da presença de Deus (segundo
a Bíblia de Jerusalém,
Társis significa fim do mundo, o lugar mais distante). A ideia de Deus que
Jonas tem é a de um Deus localizado, preso aos espaços geográficos, a de um
Deus somente de seus pais. Deus quer a salvação de Nínive, enquanto Jonas quer
a sua destruição, pois a considera a encarnação do inimigo. Por isso não se
importa que ela seja destruída e não se salve. Esse olhar de desconfiança está
presente na atitude desobediente de Jonas.
Jesus tem atitudes
bem distintas das de Jonas. Enquanto Jonas foge para longe do inimigo, Jesus
reza pelos seus inimigos (Lc 23,34); pede pela unidade dos seres humanos (Jo
17,1ss), fazendo com que seus discípulos entendam que o princípio básico da
missão é a unidade. Jesus, passando pela Samaria, constata que judeus e
samaritanos “não se dão” (Jo 4,9) e se revela como o Salvador da humanidade.
Diante da Samaritana, que lhe pergunta onde e como adorar a Deus, ele responde
categoricamente: em qualquer lugar, em espírito e verdade. Jonas, preso aos
seus esquemas mentais e à sua ideia errada de Deus, resiste em agir
missionariamente, em favor da conversão dos ninivitas. Mas Deus, rico em
ternura e em misericórdia, não se cansa de insistir com Jonas para que vista a
veste da missão e trabalhe pela salvação do povo que lhe foi confiado. Quantas
vezes também nós temos mentes estreitas e corações pequenos diante dos apelos
de Deus. Quanto nos custa entender que a verdade de Deus é maior do que nossa
“verdade”; que os caminhos de Deus não são os nossos caminhos. Quantas vezes,
como Jonas, não entendemos que Deus “nunca nos trata conforme nossos pecados,
nem nos devolve segundo nossas faltas” (Sl 103,10). Portanto, assim como existe
o caminho da dispersão, existirá sempre o caminho da proximidade e da
aproximação. Será que não estamos imitando Jonas? Os padres do deserto diziam
que o maior pecado era o da “ganância de Deus”. E hoje, qual será? Como Jonas,
será que, com algumas das nossas atitudes, não estamos dificultando a chegada
do Reino de Deus?
Nesta fuga da missão,
o barco afunda, enquanto o profeta dorme (vv. 5-16). Enquanto os marinheiros,
que eram pagãos, invocam seus deuses, Jonas dorme. Os marinheiros foram mais
dóceis à voz de Deus do que Jonas, seu profeta. Jonas só reza quando está no
ventre do peixe. Ali é que ele vai entender que Deus é o Salvador de todos os
povos. A tempestade foi um meio para Jonas buscar novamente a Deus. O
sofrimento é provocador e purificador. Parece que certas facetas do mistério de
Deus só somos capazes de perceber na doença e no sofrimento. Não foi essa, por
acaso, a percepção de Jó, depois de ter experimentado todo tipo de sofrimento?
Assim ele se expressa: “Senhor, eu te conhecia só de ouvir, mas agora meus
olhos te veem” (Jó 42,5). Também Jonas só se torna dócil ao chamado de Deus no
sofrimento, depois da oração. Portanto, não há como fugir de Deus, não há
espaço para a fuga. O livro de Jonas é construído encima disso. Assim termina o
primeiro chamado e as resistências a um projeto vocacional missionário.
Novamente Deus chama
a Jonas (Jn 3,1ss). Depois do primeiro fracasso, Jonas se converte e faz três
dias de caminhada pastoral, em apenas um dia. A notícia chega até o palácio do
rei, e todos se convertem e fazem penitência. Nínive pecadora foi mais dócil à
Palavra de Deus do que o profeta Jonas. Aqui está a raiz da fé cristã: Deus é
misericordioso com o diferente, o pecador. Deus ama Nínive, o mundo, os pagãos,
a todos. O presbítero missionário deve imitar a Deus nos seus gestos de ternura
e de bondade. Sua relação com Deus não deve ser marcada pelo interesse, mas
pelo amor e pela gratuidade.
Aqui começa uma nova
reação e um novo desafio para Jonas (Jn 4,1ss). Atendendo ao chamado de Deus,
Jonas trabalha para Nínive se converter e quando se converte, Jonas não gosta,
fica irado e quer morrer. Deus reage à ira de Jonas com o sinal da mamoneira.
Jonas faz dela a sua tenda de desgosto e nela vai habitar. Em qual tenda de
desgosto frequentemente habitamos? Que planta nos dá aparente segurança? Quando
a mamoneira não lhe dá mais sombra, Jonas chora e pede novamente a morte.
Chorar por uma planta que morre e deixar de chorar por cento e vinte mil
pessoas que estão em perigo de ser condenadas é o falimento total de um projeto
missionário. Quantas vezes também invertemos nossa escala de valores,
privilegiando o que é vil e desprezível e deixando de lado o que é justo,
santo, nobre e verdadeiro.
Assim
termina a “novela” de Jonas e começa a nossa. Jonas é um inconformado com a
misericórdia de Deus. Nós não devemos ser assim, sob pena de irmos contra o
evangelho de Jesus. A missão surpreende o missionário, corrige seus
pensamentos, purifica suas ideias, santifica sua vida. O nosso chamado
missionário, decorrente do nosso batismo e da nossa vocação presbiteral, não é
um caminho fácil de ser traçado. A espiritualidade do desapego, que leva em
conta a obediência à vontade do Senhor, não é fácil de ser vivida. Pode
acontecer conosco o que ocorreu com Jonas: “Jonas serviu o Senhor, rezou muito
e fez o bem, mas quando o Senhor o chamou, ele fugiu. Ele tinha a sua história
já escrita e não queria ser incomodado. […] Todos podemos fugir de Deus. Não
escutar a Deus, não sentir no coração a sua proposta, o seu convite, é uma
tentação cotidiana. Pode-se fugir diretamente ou de outras maneiras, um pouco
mais educadas, mais sofisticadas…” (Papa Francisco, L’Osservatore Romano,
15 out. 2013).
- Um breve manual de
instrução do missionário (Lc 10,1-12)
Há no Evangelho de
Lucas um sumário, por sinal muito bem-feito, que poderia ser chamado de “manual
de instrução” para uso do discípulo missionário. Jesus nos deixou esse manual
para nos orientar na missão (Lc 10,1-12). Lucas está apresentando o segundo
ciclo de expansão missionária. O primeiro foi o envio missionário dos doze
apóstolos (Lc 9,1-6). O segundo, o envio missionário dos setenta ou setenta e
dois discípulos, dependendo do manuscrito. Setenta é um numero simbólico, que
representa os povos do mundo (cf. Gn 10,2-31; Nn 11,16-30; Dt 32,8; Ex 1,5),
indicando que a missão de Jesus é para todos os povos da terra. Jesus instrui
os seus discípulos no serviço que eles deverão prestar à humanidade. Enquanto a
geografia se alarga, o esquema de instrução permanece o mesmo. O verbo usado
para designar essa missão é o mesmo da missão apostólica: “enviou-os à sua
frente, para onde Ele devia ir”. Há aqui uma bonita definição do discípulo
missionário: “aquele que vai à frente de Jesus, que o precede como precursor”
(Lc 10,1). O que mais surpreende é que Jesus não diz o que eles devem levar,
mas o que eles não devem levar nem fazer. Nesse manual do envio missionário dos
setenta e dois discípulos, são indicadas dez atitudes missionárias e empenhos
essenciais para uma grande missão:
- a) Setenta e dois: em
duplas (Lc 10,1). O envio, dois a dois, é uma forma de
paridade, de parceria, de apoio mútuo, de testemunho de colegialidade e de
corporação viva, evitando-se assim a tentação do isolamento, do
individualismo e da dispersão. “Dois” é um número muito recorrente na
Bíblia: a entrada na arca da de Noé foi de dois em dois (Gn 7,9); dois são
os pesos, duas são as medidas abomináveis pelo Senhor (Pr 20,10.23); sem
combinação, duas pessoas não podem andar juntas (Am 3,3); caminhar dois
quilômetros com quem pedir (Mt 5,41); não servir a dois senhores (Mt 6,24;
Lc 16,13); dois de acordo, dois reunidos (Mt 18,19-20); dois, uma só carne
(Mt 19,5; Mc 10,8; Ef 5,31); dois no campo (Mt 24,40); duas moedas da
viúva (Mc 12,42; Lc 21,2); o véu do templo rasgou-se em dois (Mt 27,51);
Jesus manifestou-se a dois (Mc 16,12); serão os dois um só coração (1Cor
6,16) etc. Por fim, “é melhor estarem dois juntos do que um sozinho,
porque tiram vantagem do seu trabalho: se um cair, será apoiado pelo
outro. Ai de quem está sozinho: quando cair, não terá quem o ajude a
levantar-se” (Ecl 4,9-10).
- b) Pedi (Lc 10,2): a oração.
A oração é a fonte da pregação, da ação e da missão de Jesus. Tudo em
Jesus brota, como de uma fonte, da união e do diálogo entre ele e o Pai.
Tudo na missão começa com a oração por mais operários para a messe. A
missão é graça e só pela oração é alcançada. A missão é de Deus. Os
enviados devem ser pessoas de oração, conscientes de que a colheita
depende da graça de Deus, e não unicamente da força dos operários. A
fecundidade da missão nasce do contato vivo e pessoal com Deus.
- c) Como cordeiros para o
meio de lobos (Lc 10,3). O anúncio missionário deve ter
precedência sobre o medo e outros condicionantes. Os enviados não devem
temer a oposição dos que se sentirem incomodados com a proposta do evangelho.
O cordeiro doa, o lobo devora. A defesa contra os “lobos” não deve ter a
marca da violência. O Papa Francisco diz que esta é parte integrante da
identidade do cristão: “o Senhor nos manda como cordeiros em meio aos
lobos, advertindo que contra eles não se deve usar a força, mas fazer como
fez Davi, que usou uma brecha e venceu a batalha”. Segundo ainda o papa,
os discípulos devem permanecer na missão como cordeiros e nunca devem se
tornar como lobos. Nunca tolo, mas sempre cordeiro. Com a astúcia cristã,
mas sempre cordeiro.
- d) Sem bolsas e sem
sacolas: a pobreza. A missão
de Jesus tem as marcas do despojamento, da gratuidade, da renúncia e da
pobreza. Renúncia à segurança e à comodidade para dar credibilidade e
testemunho à mensagem. Mas recebendo em troca um lugar à mesa e na casa.
Ele foi o primeiro a viver assim: sem dinheiro, sem provisões, sem bastão,
descalço e sem túnica de reposição. A pobreza missionária é riqueza de
Deus.
- e) A paz. a paz é
levada e dada com mansidão, e não simplesmente com palavras. Não é a
formalidade da saudação que interessa na missão. Aliás, a formalidade não
faz parte do pacote missionário. Esta, quando bem recebida, se torna
bênção; quando não, se transforma em maldição.
- f) Hospedagens nas
casas. A missão de Jesus tem também as marcas da urgência e
da prioridade. Não se deve perder tempo com questiúnculas periféricas. A
recomendação do manual é de passar de casa em casa, sem saudar as pessoas,
sem se instalar na comodidade, para não perder tempo, nem mesmo com as
saudações demoradas. A Igreja é hóspede da casa alheia. Não possui casa
própria, não tem morada permanente. Aqui se aplica bem o axioma
eclesiológico do Papa Francisco, de uma Igreja em retirada, em saída
missionária. “As Igrejas e as instituições com as portas fechadas não
devem se chamar igrejas, mas museus!” (Papa Francisco, Audiência do dia 9
de setembro de 2015).
- g) O salário do operário. A missão
de Jesus é para a cidade e as vilas, onde comumente nós estamos. Os
missionários devem confiar na generosidade que a mensagem provocará no
coração das pessoas. Como disse o Papa Francisco, aos membros das
Pontifícias Obras Missionárias ( cit.): “o dinheiro é um auxílio, mas pode
se tornar também a ruína da missão. Uma Igreja que se reduz à eficiência
dos aparatos de partido já morreu, mesmo que as estruturas e os programas
em favor dos clérigos e dos leigos ‘auto-ocupados’ durem ainda por
séculos”.
- h) A cura dos doentes. Lucas, “o
médico amado” (Cl 4,14), apresenta Jesus como o amigo dos pecadores, o
consolador dos que sofrem e o curador dos doentes. Para Orígenes e para
Jerônimo, Jesus era o médico dos médicos. No manual de instrução dos
discípulos missionários, a cura dos doentes é recomendada. A missão é
terapêutica: cura, liberta, salva e regenera. Muitas doenças são curadas
na e pela missão. O missionário é finalmente um curador de almas e de
corações.
- i) O Reino está
próximo: o anúncio. Jesus é a
fonte de tudo o que a Igreja é e de tudo o que ela crê (DV 8, DGAE,4). O
Reino é centro da missão de Jesus. Aliás, o Reino é Jesus e sua mensagem.
Não há missão sem o anuncio deste Reino. Anunciar que o Reino está
próximo, é o mesmo que dizer que Deus está perto de nós. O missionário é o
cidadão do Reino. A sua tarefa principal é anunciar o Reino.
- j) Sacudir a poeira dos pés. Embora
não seja educadamente para o nosso tempo, esta atitude é profundamente
bíblica e missionária (Lc 9,4; 10,11; At 13,51). Significa que a missão
foi cumprida, o evangelho foi vivido, Jesus foi testemunhado. A decisão, a
responsabilidade e o empenho agora são de quem recebeu a missão, ouviu o
evangelho e viu o testemunho de Jesus.
Concluindo, a missão
é um carisma, um dom e uma graça divinos. Podemos resumir a missão cristã e
presbiteral em três empenhos essenciais: a oração, o anúncio e a pobreza. E
tudo se conclui com a revelação da força e da alegria missionárias (Lc
10,17-20).
- O encantamento, o segredo
da vocação missionária
A primeira grande
missão cristã termina com os discípulos voltando alegres, felizes e encantados
com os resultados conquistados (Lc 10,17). Jesus corrige essa euforia. Felizes
sim, eufóricos não. Precisamos também nós corrigir as euforias missionárias,
mesmo estando alegres e felizes. O segredo de qualquer vocação missionária está
no encantamento por Jesus e sua Igreja. Não se vive sem encantamento. Ninguém
segue fielmente, por muito tempo, a alguém por quem não tenha encantamento. O
encantamento está na base de toda vocação à vida presbiteral. Encantamento tem
tudo a ver com sedução (Jr 20,7-13; Fl 3,7-11). O segredo da vida espiritual de
um presbítero missionário está no encantamento. Quem não se encanta e se
apaixona por Jesus, por seu Reino, por sua Palavra, por sua Igreja, por seus
pobres e por sua missão, dificilmente se manterá por muito tempo na vida
presbiteral. Jesus não chamou, acompanhou e formou igualmente 12 apóstolos?
Como explicar que uns progrediram e outro o traiu? Por que Judas o traiu? Por
causa das pequenas rebeldias, as desobediências, as infidelidades, as
teimosias, as insensibilidades e as autorreferencialidades, diferentemente dos
outros apóstolos.
Então, o segredo da
vida espiritual de um presbítero está na capacidade de se reencantar a cada
dia, de começar sempre de novo e partir, sem olhar para trás. Para quem assim
não faz, a chama da vocação se apaga e a vida vira rotina. Quem não parte, na
vida espiritual, deste ponto de partida, parte sem base, sem suporte, sem rumo,
sem projeto de vida e sem missão. Esta é a motivação que dá sentido a uma
verdadeira vocação missionária.
O coroamento da
vocação presbiteral é a missão. Sem missão não existe vocação autêntica. Para
sairmos da autorreferencialidade, é exigida a prudência, a audácia, a coragem e
a ousadia (Cf. DGAE 13, EG 33, 47, 85, 129, 167, 194). Aliás, missão se faz com
três audácias: missionária (DAp 273), evangelizadora (DAp 549) e apostólica
(DAp 552).
- Um sonho: a distribuição
equitativa dos presbíteros brasileiros
O
Papa Francisco quer uma Igreja em saída, uma Igreja nas ruas, fora da zona de
conforto e da onda da autorreferencialidade. Mas, segundo Aparecida, “falta
espírito missionário em membros do clero, inclusive em sua formação” (DAp 100
e). O que fazer para a superação desta autorreferencialidade eclesial? Um
grande missionário, padre Sávio Corinaldesi, em entrevista ao Jornal Parceiros das Missões (n.
34, abril de 2015), utilizou palavras que traduzem o que penso sobre o momento
missionário atual em que vivemos. Diz ele: “O Concílio Vaticano II tinha recordado que o anúncio
do Evangelho até os confins do mundo é obrigação de todo cristão. Depois do
Concílio, os papas continuaram lembrando a necessidade do empenho missionário.
Mais de dois mil anos depois da sua vinda ao mundo, 70% da humanidade ainda não
ouviram falar de Jesus Cristo; e dos 30% restantes, 90% precisam de uma nova
evangelização. Em um mundo que criou o
café descafeinado, o cigarro sem nicotina, o leite desnatado […], nós
inventamos a ‘missão sem saída’, o ‘envio’ sem destino. Uma missão que não se
aproxima das vítimas por receio de sujar as mãos ou a barra da túnica. Uma missão
descompromissada assim, não serve mesmo. Melhor não fazer”. Infelizmente
nós, muitas vezes, inventamos a “missão sem saída”, o “envio” sem destino que
não comunica boa-nova e não converte ninguém.
Finalmente, gostaria
de concluir com três corretivos missionários para que evitemos “a síndrome de
Jonas” que, segundo o Papa Francisco, atinge os cristãos, por tabela, os
presbíteros que não têm zelo pela conversão das pessoas e que procuram a
santidade de lavanderia, bem engomada, bem-feita, mas sem o zelo que nos leva a
anunciar o Senhor (missa, dia 14 de outubro de 2013).
Primeiro, é urgente redefinir a
identidade cristã de um presbítero gerada na missão. Os
discípulos foram considerados e chamados cristãos na missão em Antioquia (At
11,26). Não foi a Judeia nem a Galileia que os viram ungidos e parecidos com
Jesus. A rigor, o presbítero também deve ser considerado cristão na missão.
Segundo, é urgente
que se desenvolva mais a ligação entre a Igreja local e o ministério ordenado. O
ministério ordenado existe para o serviço do povo de Deus, para a edificação e
santificação da comunidade cristã. É na comunidade que se cria, se alimenta e
fundamenta a comunhão, a participação e a colegialidade. Na missão, ninguém se
autoenvia. Quem envia um missionário é a Igreja. Terceiro, é urgente a coragem de realizar
o sonho da distribuição equitativa dos presbíteros no Brasil.
Somos hoje 24.601 presbíteros no Brasil para cuidar de uma população de 204
milhões de habitantes. Daria para cobrir equitativamente todo o território
brasileiro para que ninguém ficasse sem o seu presbítero. É preciso que levemos
a sério a distribuição dos presbíteros como uma questão missionária. Faltam
presbíteros ou falta distribuição equitativa dos presbíteros? Faltam
presbíteros ou falta espírito missionário nos presbíteros do Brasil?
Dom Pedro Brito Guimarães
Arcebispo de Palmas – TO. E-mail: dompedrito@msn.com
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