SANTO AGOSTINHO E SUAS CONVERSÕES
Por Padre Paulo
Ricardo
A vida de Santo Agostinho é um caso especial de conversão
ao cristianismo, que surpreende tanto pela sua determinação como pelas
dificuldades que ele teve de enfrentar. Santos como Francisco de Assis e Inácio
de Loyola aceitaram a fé católica após se darem conta da desolação que os
pecados da carne lhes causavam. É o que acontece também com a maior parte dos
cristãos. Na
história de Santo Agostinho, porém, o encontro com Cristo não aconteceu
depois de uma frustração moral, mas após uma busca sincera e perseverante pela
verdade, que durou mais de 14 anos.
Agostinho nasceu em Tagaste, norte da África, em 354,
apresentando, desde muito cedo, um grande talento intelectual. O jovem realizou
seus estudos em outras cidades e, aos 19 anos, acabou se dispersando pelas
paixões da adolescência, unindo-se a uma concubina, com quem teria um filho e
passaria 14 anos ao seu lado. Isso serviu para controlar o seu ímpeto sexual
fogoso. Agostinho foi extremamente fiel a sua amante.
Na escola, o santo havia aprendido o trivium, ou seja, a arte
da lógica, da gramática e da retórica, disciplinas que o persuadiram a ser um
grande orador. Através dessa realidade, tornou-se um sofista, alguém que usa os
discursos para convencer os outros de suas opiniões, ainda que estas estejam
erradas. Em Cartago, ele aperfeiçoou seus estudos e teve contato pela primeira
vez com o livro Hortensius,
de Cícero, um escrito que posteriormente se perdeu. A crítica do texto contra
as coisas efêmeras causou-lhe uma profunda comoção, incentivando-o a buscar a
verdade, como narra nas Confissões: “Aquele
livro mudou verdadeiramente o meu modo de sentir”, a ponto que “de repente
perdeu valor qualquer esperança vã e desejava com um incrível fervor do coração
a imortalidade da sabedoria" (III, 4, 7).
A princípio, Agostinho tentou buscar a verdade na Igreja
Católica. Mas o texto bíblico lhe pareceu rude demais e, somado ao seu
preconceito contra o cristianismo, ele não encontrou quem o orientasse
teologicamente nesse estudo. O jovem acabou buscando apoio entre os maniqueus,
cuja falsa ciência adaptava Jesus ao pensamento materialista e dualista.
A filosofia dos maniqueus acabou se revelando insuficiente
e, tendo se frustrado com o líder maniqueísta Fausto, Agostinho decidiu ir para
Roma, escondido de sua mãe Mônica, para fundar uma escola de retórica. Na
cidade, deparou-se com a desonestidade dos alunos, que não o pagavam pelas
aulas. Com a ajuda do prefeito, mudou-se para Milão, onde estudou os acadêmicos
e caiu no ceticismo. Nesse percurso intelectual por respostas sobre a verdade,
Agostinho descobriu a filosofia neoplatônica, que lhe revelou a existência de
um princípio espiritual, pelo qual descobriu a necessidade de uma vida interior
e de uma luz natural da razão para encontrar Deus, como narra nestas belíssimas
páginas de suas Confissões (VII,
10, 18):
Instigado a voltar
a mim mesmo, entrei em meu íntimo, sob tua guia e o consegui, porque tu te
fizeste meu auxílio (cf. Sl 29,
11). Entrei e com certo olhar da alma, acima do olhar comum da alma, acima de
minha mente, vi a luz imutável. Não era como a luz terrena e evidente para todo
ser humano. Diria muito pouco se afirmasse que era apenas uma luz muito, muito
mais brilhante do que a comum, ou tão intensa que penetrava todas as coisas.
Não era assim, mas outra coisa, inteiramente diferente de tudo isto. Também não
estava acima de minha mente como óleo sobre a água nem como o céu sobre a
terra, mas mais alta, porque ela me fez, e eu, mais baixo, porque feito por
ela. Quem conhece a verdade, conhece esta luz.
Ó eterna verdade e verdadeira caridade e cara eternidade! Tu és o meu Deus, por
ti suspiro dia e noite. Desde
que te conheci, tu me elevaste para ver que quem eu via, era, e eu, que via,
ainda não era. E reverberaste sobre a mesquinhez de minha pessoa, irradiando
sobre mim com toda a força. E eu tremia de amor e de horror. Vi-me
longe de ti, no país da dessemelhança, como que ouvindo tua voz lá do alto: “Eu
sou o alimento dos grandes. Cresce e me comerás. Não me mudarás em ti como o
alimento de teu corpo, mas tu te mudarás em mim”.
O testemunho de Santo Agostinho é a perfeita refutação das
teses de Lutero, o qual se professava agostiniano. O bispo de Hipona foi guiado
por Deus, pela luz natural da razão, mesmo antes da
sua conversão, quando ainda era neoplatônico. E, diante da grandeza de Deus,
“tremia de amor e de horror” por ver-se tão pequeno.
De fato, nós somos apenas uma bactéria que vive em uma
poeira chamada Terra. Somos apenas mais um ponto no meio de uma galáxia de mais
de cem bilhões de estrelas. Se existimos, portanto, é porque Deus nos sustenta
no ser. Foi essa experiência filosófica de amor e horror que comoveu
profundamente Agostinho, ajudando-o a superar o ceticismo e o materialismo
maniqueu.
Mas ainda faltava um obstáculo.
Agostinho deparou-se com a grandeza de Deus e percebeu que
para alcançá-lo precisaria de um mediador:
E eu procurava o
meio de obter forças, para tornar-me idôneo a te degustar e não o
encontrava até
que abracei
o mediador entre Deus e os homens, o homem Cristo Jesus (1Tm 2, 5), que é Deus acima de tudo, bendito
pelos séculos (Rm 9,
5). Ele me chamava e dizia: Eu
sou o caminho, a verdade e a vida (Jo 14, 6). E o alimento que eu não era
capaz de tomar se uniu à minha carne, pois o Verbo se fez carne (Jo 1, 14), para dar à
nossa infância o leite de tua sabedoria, pela qual tudo criaste.
Tarde te amei, ó beleza
tão antiga e tão nova, tarde te amei! Eis que estavas dentro e eu, fora. E
aí te procurava e lançava-me nada belo ante a beleza que tu criaste. Estavas
comigo e eu não contigo. Seguravam-me longe de ti as coisas que não existiriam,
se não existissem em ti. Chamaste, clamaste e rompeste minha surdez, brilhaste,
resplandeceste e afugentaste minha cegueira. Exalaste perfume e respirei. Agora
anelo por ti. Provei-te, e tenho fome e sede. Tocaste-me e ardi por tua paz.
A descoberta da verdade provocou em Agostinho uma grande
mudança. Ele abandonou sua concubina e decidiu-se pelo celibato, embora não
encontrasse ainda forças para vivê-lo, por causa dos constantes apelos da
carne. Foi então que uma conversa com o amigo Possídio, o qual lhe contou sobre
a vida de Santo Antão, levou-o a chorar seus pecados em um jardim, onde lhe
apareceu uma criança com a Sagrada Escritura, que disse: “Toma e lê”. Agostinho
abriu no capítulo 13 da Carta aos Romanos (v. 13-14), que fala sobre a
castidade, e viveu sua terceira conversão. Depois desse episódio, o santo foi
para Óstia, onde assistiu à morte de sua mãe e, finalmente, foi ordenado
presbítero.
O itinerário de Santo Agostinho deve nos provocar um sério
exame de consciência. Ele, que sentia uma profunda vertigem diante de Deus, nos
inspira a mudar o modo como tratamos o Senhor, lembrando-nos de que Ele não é
uma pessoa qualquer. A busca da verdade precisa ser o objetivo de todo cristão,
pois não é possível compactuar com um cristianismo marqueteiro, que falsifica o
Evangelho para adaptá-lo ao gosto do mundo moderno. Agostinho passou 14 anos à
procura da verdade até finalmente encontrá-la e deixar-se moldar por ela. Que
tenhamos também essa mesma disposição em nossos corações.
Referências
o Agostinho, Confissões;
De Magistro. 2.ª
ed. São Paulo: Abril Cultural, 1980.
o Agostinho, Excerto
das Confissões, em latim/português, usado pelo Pe.
Paulo Ricardo durante a transmissão.
o Agostino Trapè, Introduzione a
Sant'Agostino.
https://padrepauloricardo.org/episodios/as-conversoes-de-santo-agostinho
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