REFLEXÃO DOMINICAL I
A soberania de Deus e nossa fé
O mote da liturgia de hoje é: fé-fidelidade (o
termo bíblico tem os dois sentidos). Quando Habacuc (1ª leitura), diante da
desordem em Judá, nos últimos anos antes do exílio, grita a Deus com
impaciência, quase com desespero, Deus anuncia que ele tratará o mal por um
remédio mais tremendo ainda: os babilônios. A objeção de Habacuc contra esta
solução, Deus responde: “Eu sei o que faço; não preciso prestar contas; mas os
justos se salvarão por sua fidelidade” (2, 2-4). O evangelho começa com a prece
dos Apóstolos: “Senhor aumenta-nos a fé”.
O sentido de “fé” é um pouco diferente daquilo que
Habacuc quer dizer. No A.T., trata-se da autenticidade e lealdade para com
Deus, a fidelidade; no N.T., da adesão a Jesus Cristo (ambas as atitudes são
indicadas pelo mesmo termo em grego, pistis, e em latim, fides). De fato, a
adesão de fé implica também a lealdade e a fidelidade.
A resposta de Jesus é uma admoestação para que
tenham mais fé, fé que transporta montanhas! Jesus utiliza aqui o estilo
hiperbólico dos orientais, mas não deixa de ser verdade que, quem se entrega em
confiança a Deus em Jesus Cristo, faz coisas que outros não fazem e que ele
mesmo não se julgava capaz de fazer.
Assim como, em Hab, Deus não presta contas ao
profeta, vemos, no evangelho, Deus como um senhor que não precisa prestar
contas a seus escravos. Depois do longo trabalho no campo, ele pode ainda pedir
que eles preparem a comida e lha sirvam sem reclamar, pois fizeram somente seu
dever. Claro que Jesus não está justificando este modo de agir; apenas descreve
a realidade de seu tempo para expressar uma idéia religiosa: que Deus não
precisa prestar contas: quando o servimos, fazemos apenas o que devemos fazer.
Mensagem chocante em nosso mundo, onde a mínima
prestação de serviço exige uma gratificação específica. Ainda que, muitas
vezes, a gratificação não valha o serviço, essa mentalidade exclui todo o
espírito do serviço gratuito. Ora, no Reino de Deus somos participantes; nossa
recompensa existe no participar, como Paulo diz a respeito do anunciar o
evangelho gratuitamente (1 Cor 9,16). Na realidade Jesus usa um exemplo tirado de
uma sociedade paternalista. Ao interpretar, devemos excluir esses traços
paternalistas. O que Jesus quer mostrar é que participamos no projeto de Deus
não em função de uma compensação extra, mas porque é a obra de Deus. Pois o
próprio Deus é nossa recompensa, a realização de seu amor supera qualquer
recompensa que poderíamos imaginar.
Na 2ª leitura, Paulo admoesta seu amigo Timóteo a
manter plena fidelidade ao Senhor. Pois também o ministro da fé deve firmar-se
na fidelidade, para poder firmar seus irmãos na fé. Não se envergonhar (o
cristianismo era ridicularizado e perseguido nas cidades do mundo “civilizado”
de então), observar a doutrina sadia recebida do Apóstolo (contra as fantasias
gnósticas e outras que se introduziram no cristianismo primitivo), guardar o
“bom depósito”, ou seja, o bem a ele confiado, o evangelho. Nas circunstâncias
daquele tempo e de todos os tempos, isso só é possível com a força do Espírito
Santo.
Recebemos hoje, portanto, uma mensagem para
valorizar a fé, inclusive, como base da oração. Mas nossa fé não é uma espécie
de fundo de garantia para que Deus nos atenda. Assim como ele não precisa
prestar contas, também não é forçado por nossa fé. Nossa fé é necessária para
nós mesmos, para ficarmos firmes na adesão a Deus em Jesus Cristo. Deus mesmo,
porém, é soberano, e soberanamente nos dá mais do que ousamos pedir (oração do
dia).
Do livro “Liturgia Dominical”, de
Johan Konings, SJ, Editora Vozes
Mensagem
Somos
simples servos
Quem não gosta de um elogio? Não estão nossas
igrejas tradicionais cheias de inscrições elogiando os generosos doadores dos
bancos, dos vitrais ou da imagem de Santa Filomena?
Ora, o Evangelho nos propõe uma atitude que parece
inaceitável a uma pessoa esclarecida, hoje em dia: o empregado não deve
reclamar quando, depois de todo o serviço no campo, em vez de ganhar elogio,
ele ainda deve servir a janta. Ele é um empregado sem importância; tem de fazer
seu serviço, sem discutir.
Jesus nos quer ensinar a estar a serviço do Reino
sem darmos importância a nós mesmos. Ele mesmo dará o exemplo disso,
apresentando-se, na Última Ceia, como aquele que serve (Lc 22,27).
Isto não rima com a mentalidade calculista e
materialista da nossa sociedade, que procura compensação para tudo o que se faz
– aliás, compensação superior ao valor daquilo que se faz…
Se levarmos a sério a parábola de Jesus, como então
ensinamos aos empregados e operários reivindicarem sempre mais (porque, se não
reivindicam, são explorados)? Certamente, Jesus não quer condenar os movimentos
de reivindicação. A questão é outra. Ele quer apontar a dedicação integral no
servir. Interesse próprio, lucro, reconhecimento, fama poder… não são do nível
do Reino, mas apenas da sobrevivência na sociedade que está aí. A parábola não
serve para recusar as reivindicações de justiça social, mas para declarar
impróprios os interesses pessoais no serviço do Reino.
Convém fazer um sério exame de consciência sobre a
retidão e a gratuidade de nossas intenções conscientes e de nossas motivações
inconscientes. Na Igreja, tradicional ou progressista, quanta ambição de poder,
quanto querer aparecer, quantas compensaçõezinhas!
E mesmo com relação às estruturas da sociedade, a
parábola de Jesus hoje nos ensina a não focalizarmos única e exclusivamente as
reivindicações. Estas são importantes, no seu devido tempo e lugar, para
garantir a justiça e conseguir as transformações necessárias. Mais fundamental,
porém, na perspectiva de Deus, é criar o espírito de serviço e disponibilidade,
que nunca poderá ser pago. Quem vive no espírito de comunhão nunca achará que
está fazendo demais para os outros.
“Somos simples servos”. Antigamente se traduzia:
“Somos servos inúteis”. Tal tradução era psicológica e sociologicamente
nefasta, pois fomentava a acomodação, além de contraditória, pois servo inútil
não serve… Servindo com simplicidade, não em função de compensações egoístas,
mas em função da fidelidade e da objetividade, somos muito úteis para o projeto
de Deus.
Do livro “Liturgia Dominical”, de
Johan Konings, SJ, Editora Vozes
https://diocesejacarezinho.org/2019/10/27o-domingo-do-tempo-comumano-c/
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